Mudanças à vista - e África? 

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Está a ocorrer uma disputa entre a pretensão do Ocidente, sob o domínio dos EUA, de instituir um poder único à escala global, substituindo assim, definitivamente, a ordem bipolar típica da antiga Guerra Fria, e a determinação de um grupo de potências emergentes para criar uma ordem multipolar, caracterizado, portanto, pelo multilateralismo e não pelo unilateralismo. Talvez seja mais correto falar em várias disputas, pois, se no campo ocidental parece haver uma total e lamentável submissão da União Europeia ao ainda dominante Império Americano, entre os países emergentes não existe, para já, qualquer unanimismo, ao menos em termos geopolíticos; assim, é possível identificar diferenças importantes entre eles, como, só para citar um exemplo, a China e a Índia.

O economista e jornalista angolano Jonuel Gonçalves, em artigo publicado neste jornal no passado dia 12 de setembro, fala mesmo em vários "eixos da multipolaridade", os quais não são apenas político-militares, mas também económicos, tecnológicos e financeiros. Ele dá como exemplo o projeto da nova "rota" anunciada na sequência da última reunião do G20, começando precisamente na Índia e seguindo pela Ásia Ocidental, Mediterrâneo, União Europeia e Estados Unidos, em resposta à "nova rota da seda" lançada pela China e já em construção. A verdade é que os resultados do encontro do G20, realizado em Nova Deli, associados ao anúncio dessa nova "rota" concorrente da chinesa, confirmam que o multilateralismo é não apenas desejável, mas possível. A reunião do G77+China que acaba de ocorrer em Havana perfila-se no mesmo sentido.

A defesa explícita do multilateralismo é o que une os BRICS, os quais, em definitivo, não podem ser considerados, como alguns - bizarramente - insistem, uma criação ou um instrumento da China. Não deixa, assim, de ser um bom sinal que o G20 pareça ter assumido também essa visão. Se a Administração Americana tiver como libertar-se dos interesses do complexo industrial-militar - denunciado pela primeira vez, como se sabe, por Eisenhower -, deveria esquecer a pretensão de impor a todo o mundo a sua única tutela, optando por exercer a sua pretendida liderança através do exemplo e não da força. O primeiro passo teria de ser cessar urgentemente a guerra da Ucrânia, através de um acordo que sirva realisticamente a todos, esquecendo o desejo dos seus falcões de destruir a Rússia e, em seguida, iniciar uma guerra com a China.

E África, como se posiciona em todo este quadro? Jonuel Gonçalves anota que "há um vazio na formatação das "rotas": América Latina, Caribe e África". Quanto à América Latina e, quiçá, ao Caribe, a presidência do G20 pelo Brasil, que sucederá à Índia, poderá contribuir para integrar decisivamente tais regiões no processo de reestruturação da atual ordem mundial. Entretanto, como cidadão e intelectual africano, não posso deixar também de me preocupar com o posicionamento do nosso continente nesse debate.

Por coincidência, recebi há dias um ensaio sobre essa questão escrito por um grupo de filósofos moçambicanos - Severino Ngoenha, Giverage Amaral, Samuel Ngale, Augusto Hunguana e Filomeno Lopes - e publicado no passado dia 7 de setembro pelo saite (assim mesmo, aportuguesado) "filosofia pop", que dá um grande destaque ao pensamento filosófico africano. O referido texto, intitulado Os ventos da mudança, precisa de ser lido com urgência por todos os líderes africanos.

Os autores citam dois factos que, na sua opinião, constituem mudanças que África não deverá ignorar ou alhear-se das mesmas: os BRICS e os acontecimentos no Sahel. Sobre o primeiro, escreveram: "O que é interessante nos BRICS é a busca de uma alternativa aos 700 anos de hegemonia desumana do Ocidente feita lei e imperativo de relações entre nações e povos". Sobre os acontecimentos no Sahel, afirmaram que os mesmos contribuíram para "o desvelar da imoralidade das condições impostas para as independências na África francófona (onde a França controla os recursos, as finanças, determina os poderes, legitima os regimes políticos em função dos seus interesses), assim como a sua denúncia e recusa em perpetuar."

Eles não têm dúvidas: os países africanos têm de participar no esforço de mudança de paradigma representado pelos BRICS e, por outro lado, não podem ficar alheios aos ventos históricos que decorrem no Sahel, limitando-se a reproduzir a linguagem do "retorno à ordem constitucional". Tal linguagem, sublinhe-se, é classificada pelos autores do texto como "neocolonial". Para os cinco filósofos moçambicanos, "é contra a piora da normalização das desigualdades, contra a institucionalização de sistemas políticos e económicos de tutela e clientelismo (...) que se levantam os ventos de mudança no Sahel...".

A pergunta que fica no ar é se os atuais líderes africanos estarão à altura dessas mudanças ou se apenas estão preocupados com a sua manutenção no poder.

Escritor e jornalista angolano

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