Mouraria a renascer entre o fado e a kora

A Mouraria era um dos bairros mais degradados de Lisboa. Hoje é um dos exemplos de renovação e de integração de pessoas de diferentes origens e culturas. Parte desse trabalho foi feito pela Associação Renovar a Mouraria, criada em 2008. No Beco do Rosendo todos se tratam por vizinhos e todos são bem-vindos.
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Ebrima toca a kora apenas com com quatro dedos mas todos ao mesmo tempo. É quase tão maravilhoso vê-lo como ouvi-lo, cada dedo a dar um som diferente. Ebrima fecha os olhos e sorri enquanto toca. No pequeno palco do Beco do Rosendo, em Lisboa, montado em frente da Mouradia, Ebrima Mbye vai explicando, em inglês, que aquele instrumento tem 21 cordas e é muito utilizado na África Ocidental. Um pequeno grupo de pessoas senta-se na escadaria que serve como anfiteatro, outros estão na esplanada, bebendo limonada ou sangria ou uma imperial fresquinha que sabe tão bem neste fim de sábado enquanto a noite começa lentamente a cair sobre a Mouraria.

Ebrima não sabe falar português. Tem 27 anos e chegou a Portugal em fevereiro, vindo da Gâmbia, com passagem pelo Senegal, Zimbabwe, Mali, Tanzânia e Alemanha. Foi na Alemanha que conheceu um músico que lhe falou de Portugal e, chegado a Lisboa, já nem sabe bem como chegou à Mouraria, onde agora mora. Ebrima diz que aprendeu a tocar ainda na barriga da mãe. "Eu não escolhi esta profissão", diz, timidamente, deliciando-se com um prato de bacalhau, após o concerto. "Quero ficar em Portugal. Gosto de viver aqui."

"Ele é maravilhoso, não é?", pergunta Inês Andrade. A principal responsável da Associação Renovar a Mouraria está a ajudar Ebrima com as questões legais e burocráticas. "Como qualquer músico, ele não tem um contrato de trabalho e sem contrato fica tudo muito mais complicado..." Ebrima é apenas um dos muitos imigrantes que encontram nesta associação uma mão amiga que os guia pelos meandros da língua e da lei portuguesas. "A associação não nasceu com esse objetivo de ajudar os imigrantes, mas é inevitável", explica Inês. Afinal, cerca de 30% dos habitantes da Mouraria não são portugueses. "Temos 51 nacionalidades diferentes no bairro", conta. Índia, Bangladesh, Paquistão e China são alguns dos países mais representados, para além, claro, das comunidades dos países de língua portuguesa.

A ligação de Inês Andrade à Mouraria começou já há muito tempo, quando ela veio de Cantanhede para estudar na faculdade e se perdia em passeios por aquela zona de Lisboa: "Quando comecei a trabalhar e quis comprar uma casa só procurei aqui. Era o bairro mais especial, cada rua lembrava--me um fado e a vivência das pessoas mexia muito comigo. Aqui toda a gente conhece toda a gente, para o bem e para o mal." Entretanto, em 2004, Inês foi passar uns tempos ao Brasil para fazer a investigação para a sua tese de mestrado sobre o imaginário infantil e o escritor Monteiro Lobato. Na cidade de Olinda, encontrou uma cidade "irmã" da sua Mouraria. "O centro histórico é igual, mas com uma diferença grande: em Olinda o centro estava completamente recuperado e a vivência cultural é muito forte. Apaixonei-me por Olinda e na altura até equacionei não voltar a Portugal. Mas decidi voltar e tentar fazer algo semelhante na Mouraria."

Foi então que começou a aventura de "renovar a Mouraria". "Regressei, nunca mais me lembrei de escrever a tese e canalizei todas as minhas energias para aqui", conta Inês. "Comecei a desafiar amigos e vizinhos. Vamos lá dar uma vida nova aqui ao bairro."

A primeira coisa que fizeram foi começar a aparecer nas reuniões de câmara. Em todas as reuniões. Para fazer pressão. "Fizemos uma ação concertada para garantir que estava sempre lá alguém para falar da Mouraria. Porque o bairro estava muito degradado e havia coisas que tinham de ser feitas, nas ruas, nas praças, nos equipamentos, e que não podíamos fazer sozinhos." Ao mesmo tempo fizeram uma petição e contactaram todos os responsáveis polí-ticos chamando a atenção para o bairro, uma "pérola" no centro de Lisboa mas "abandonada, suja, degradada, moralmente abatida", onde viviam "mais de cinco mil habitantes, muitos deles em condições desumanas, com problemas de salubridade e de recolha de lixos, tráfico e consumo de droga a céu aberto, fraco policiamento, ausência de jardins e espaços infantis, entre outros graves problemas", segundo se lia no manifesto inicial. Quando as queixas dos moradores chegaram à comunicação social, a câmara convidou este grupo de moradores para uma reunião e começaram a trabalhar em conjunto - projetar equipamentos estratégicos e candidatá--los a fundos comunitários.

"Foi o arranque disto tudo. Começámos pela recuperação do espaço público, que era uma das áreas fundamentais. A calçada estava destruída, não se conseguia andar. O trânsito estava desordenado." Parecem coisas pequenas mas fazem toda a diferença no dia--a-dia de quem ali vive. A Associação Renovar a Mouraria foi criada, oficialmente, em março de 2008. Em dezembro de 2012 foi inaugurada a Mouradia, casa comunitária que é também sede da associação. Situada no Beco do Rosendo e com um bar onde, além dos petiscos, se realizam concertos e outros eventos culturais, esta casa tornou-se um ponto de encontro - de pessoas de diferentes etnias e idades, de vizinhos e de outros, que não moram no bairro mas por ali aparecem.

Outros equipamentos surgiram, entretanto, como o Centro Intergeracional de São Cristóvão, que tem atividades para crianças e idosos, e a Casa da Severa, que é uma casa de fados e museu. O Centro de Inovação era um dos "equipamentos estratégicos para o bairro" que foram pedidos pelos moradores desde o início. Inaugurado há pouco, com grande pompa e circunstância, tem sido alvo de muitas críticas por parte da associação. "O projeto inicial não se cumpriu. Queríamos que fosse um sítio onde todos pudessem desenvolver os seus projetos, em ligação com o bairro. Foi o maior investimento que a câmara fez na Mouraria e está fechado para meia dúzia de "incubados" estarem lá a fazerem os seus projetos. Não era nada disso que se pretendia. Essa foi uma das coisas que correram mal", lamenta Inês, que, no entanto, ainda não desistiu de ver concretizado o projeto original.

O que funciona, isso Inês sabe bem, é trabalhar com os moradores do bairro. De dentro para fora. "No início as pessoas estavam muito desconfiadas, sobretudo os portugueses. Mas agora já não. As pessoas estão muito cansadas de promessas que não se concretizam. Nós começámos logo a fazer coisas", conta Inês. "Houve aqui muito trabalho e as condições de vida melhoraram muito. A Mouraria está em contraciclo em relação ao país porque a economia local cresceu, o comércio e a restauração estão com grande movi-mento."

Integração é a palavra-chave. "Está demonstrado que se não conseguirmos trabalhar com as pessoas as coisas não fazem sentido e não correm bem", diz Inês. Essa é a filosofia base da organização. "Temos uma componente social e uma componente cultural mas procuramos que estejam sempre interligadas." Por exemplo, aqueles que vão à Mouraria à procura das aulas de Português ou de alfabetização ou do serviço jurídico são muitas vezes convidados a subir ao palco na esplanada ou a virem cozinhar no restaurante. Qualquer morador pode apresentar um projeto ou pedir ajuda para o que precisar. Por exemplo, aqueles que ainda não sabem falar bem português precisam de ajuda para ir às finanças ou à Segurança Social, até para ir ao médico. "Não conseguimos responder a todos, fazemos o que é possível." Às vezes, bastam coisas simples, como estabelecer pontes, convidar um vizinho para participar, ir buscar alguém que está sozinho em casa para vir à noite de fados. O acompanhamento é de proximidade.

Outro exemplo: Sandra Possolo, antiga cabeleireira e agora responsável pelo restaurante da associação, ofereceu-se para fazer um "cabeleireiro solidário". "Faço muitos domicílios, a pessoas que estão em casa e que precisam desse apoio para se sentirem mais bonitas. Às vezes até só para conversar", conta Sandra. "É só mesmo para quem não pode pagar uma ida ao cabeleireiro."O Rosa Maria, o jornal da associação, é feito só por voluntários. No arraial do mês de junho também houve cerca de 40 voluntários, moradores do bairro, que estiveram ali a trabalhar. Fosse a apanhar lixo ou a servir bebidas. "A entreajuda é permanente. Queremos que sintam que aqui é a casa deles."

Ou então os moradores podem oferecer-se como guias nas várias visitas organizadas ao bairro - há visitas cantadas, dedicadas ao fado, e visitas feitas por imigrantes que mostram o "seu" bairro. "Todos têm percursos diferentes e não é uma visita turística, é uma coisa do coração. Quando as pessoas gostam dos locais falam deles de maneira diferente." Levam os visitantes a provar as especiarias africanas ou os doces paquistaneses, mostram-lhe as lojas onde costumam comprar as roupas tradicionais ou os supermercados halal.

Os vizinhos espreitam da janela sobre o Beco do Rosendo para espreitar os concertos. Inês conhece os nomes de quase todos. "Ainda há muito por fazer", diz. "Por exemplo, faz falta um equipamento cultural que seja uma âncora de tudo o que se passa aqui. Mas o importante é continuar esta dinâmica. As pessoas já começaram a propor, a agir." O bairro é de quem, venha de onde vier, decide aqui morar, não é dos turistas que passam aqui duas noites e se vão embora. "Importante é quem fica."

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