Mosteiros com ícones de ouro em país católico
Ortodoxos. A eleição de Kiril I como sucessor de Alexis II para patriarca da Igreja Ortodoxa Russa suscitou a curiosidade do mundo. E em Portuga, também há templos, como o do mosteiro do Nascimento da Virgem Maria, parecidos com aqueles que fizeram a fama do helénico Monte Atos ou da búlgara montanha de Rila
Monjas que pintam na esteira de um Andrei Rubliev
"Para quem o sabe observar, um ícone é uma autêntica lição de teologia", sintetiza o arcebispo Teodoro, chancelar da Igreja Católica Ortodoxa de Portugal. O interior da igreja do mosteiro do Nascimento da Virgem Maria, fundado em 2001 num terreno recatado no concelho de Vila Franca de Xira, na opinião do arcebispo - que os crentes identificam por trazer uma Panaghia (imagem da Virgem Maria) ao peito - é o mais belo templo ortodoxo da Península Ibérica.
Duas das monjas que ali vivem, entre o chilrear dos pássaros e o murmúrio dos regatos, dedicam-se à arte de pintar os ícones com pigmentos, sublinhando "o esplendor que irradia dos santos" através da folha de ouro com que fazem o fundo. Não terão o génio de um Andrei Rubliev (1360-1430), esse famoso artista russo que Tarkovsky internacionalizou no cinema, nem dos seus mestres Teófanes, O Grego,e Prokhor, de Gorodets.
Grande parte das figuras que os fiéis ali podem apreciar - e, também, nos mosteiros de Sintra e do Buçaco, nas igrejas da arquidiocese de Braga e Lisboa, das dioceses de Coimbra e Aveiro, Porto e Vigo, Évora e Setúbal, Silves e Portimão - parecem seguir o antigo Guia dos Pintores do Monte Athos na concepção das figuras: personagens de frente com postura majestática, rostos estáticos e alongados de olhar intenso, insígnias e gestos que são atributos de cada vulto do cristianismo, perspectiva e paisagem quase ignoradas, cores mais ligadas ao simbolismo do que ao realismo.
Noutros ícones, porém, nomeadamente nos que representam episódios como a Dormição da Virgem Maria (o equivalente, no catolicismo, à Assunção de Nossa Senhora), há um pouco menos desta rigidez conceptual. Afinal, a exemplo da tradição ocidental, há dois mil anos de escolas estéticas no cristianismo oriental, o que se terá acentuado ainda mais pelo facto de existir uma enorme variedade de ritos e tradições independentes, pois o patriarca de Constantinopla só tem um poder honorífico, não o poder uniformizador do Papa.
Para perceber melhor a rica gama destas concepções basta reparar no iconastase (espécie de biombo que separa a parte sagrada da nave), ladeado pelos arcanjos Miguel e Gabriel, desta igreja de Vila Franca de Xira. O painel tem um friso de cenas da Vida de Cristo e a Santa Ceia (para os católicos, Última Ceia) num estilo mais naturalista. Mas as figuras maiores pintadas sobre a placa de madeira - desde o rei David aos doutores da Igreja (São Basílio de Cesareia, São João Crisóstomo, São Gregório de Nazianzo), passando pelos profetas e pelos apóstolos - têm todas uma concepção mais hierática.
Os cerca de 50 mil ortodoxos portugueses - a que se juntam agora muitos emigrantes russos, ucranianos, georgianos, moldavos e romenos - podem saber pouco sobre as polémicas religiosas, como a do filioque (a expressão latina que significa "e do filho", acrescentada pela Igreja Católica Romana ao Credo para explicar que o Espírito Santo procede não só do Pai, mas também do Filho, o que foi considerado uma heresia pela Igreja do Oriente, vindo a originar o posterior cisma entre Roma e Constantinopla); mas sabem que, independentemente de seguirem o rito litúrgico bizantino ou eslavo, celebram a Festa da Exaltação da Santa Cruz, mas não o feriado católico do Corpo de Deus.
E, reparando bem nos ícones que proliferam naquela pequena igreja do mosteiro, dedicada a São Sérgio de Radonege (1314-1392), um dos mais importantes santos russos, verifica-se que a escolha das figuras ilustra também a evolução da Igreja Católica Ortodoxa de Portugal. Se existem imagens comuns a todas as igrejas ortodoxas, como a do Cristo Pantocrator (em grego, Todo Poderoso), há também as que são veneradas por cada tradição.
Neste templo do mosteiro feminino de Vila Franca de Xira, que é um complexo todo edificado em madeira, tanto se encontram santos portugueses do primeiro milénio (como São Pedro de Rates, São Martinho de Dume, Santo Idácio de Chaves) como santas das tradições grega (Santa Irene Chrysovalantou) ou romena (Santa Parasceva). E, no átrio, entre outras imagens oferecidas por comunidades estrangeiras em Portugal, há uma representação em material nobre de S. Jorge a matar o dragão que é uma dádiva da comunidade georgiana.
Nada que se perceba ao ver o exterior discreto como mandam as regras ortodoxas. Afinal, quando há anos ali nevou, as pessoas que viam as fotos pensavam que tinham sido captadas no helénico Monte Atos ou na búlgara montanha de Rila.