Morreu Rosie Ruiz, que só correu um quilómetro e meio e ganhou maratona de Boston

Em 1980, Ruiz enganou o mundo, foi desqualificada, mas levou confissão (e a medalha de ouro) com ela para a cova.
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Fica para a história como a maior batoteira do desporto - sem doping à mistura. A americana de ascendência cubana Rosie Ruiz teve de percorrer 66 anos para ser derrotada por um cancro, mas a notícia da sua morte demorou um mês a chegar (soube-se agora, por vias travessas, depois de ter sucumbido a 8 de julho). A 21 de abril de 1980 surpreendeu o mundo ao ganhar a prestigiada maratona de Boston. Mas, provou-se sem que Ruiz o tenha alguma vez admitido frontalmente, só correu o quilómetro e meio final dos 42.195 metros totais. Foi um choque, mas a medalha de ouro, essa, ninguém lha tirou.

"Posso dizer verdadeiramente sem hesitações que hoje foi o segundo dia mais triste da minha vida", citou-a há pouco mais de 39 anos a agência de notícias The Associated Press. "Apenas é ultrapassado pelo dia em que tive de deixar o meu pai no meu país natal há 18 anos", completou Rosie.

Nascida em Havana a 21 de junho de 1953, Rosie Ruiz deixou Cuba e emigrou para a Florida com oito anos de idade. A vida de Rosie é recheada de batotas, esquemas, crimes, problemas.

Mas antes disso tudo se amontoar, a celebridade em Boston, numa das provas de atletismo mais distintas do globo. As imagens mostram uma atleta em glória, escoltada em vitória pelos polícias, saudando os adeptos, gozando o triunfo com a leveza dos predestinados.

As suspeitas começaram a espalhar-se como fogo em palha seca ainda na zona de meta e interromperam a lua-de-mel de Ruiz com a medalha de ouro - mas não o casamento, uma vez que nunca devolveu o símbolo de vencedora, obrigando a organização a fazer uma réplica para a vencedora oficial, a canadiana Jacqueline Gareau.

"Então, melhorou de 2 horas e 56 minutos para 2 horas e 31 minut0s?", espantou-se outra mulher célebre graças à maratona de Boston, no caso a repórter Kathrine Switzer, a primeira mulher a competir na prova em 1967. O espanto era tal que a Switzer lhe estava a fazer comichão que Ruiz tivesse tirado 25 minutos da primeira para a segunda maratona. Segundo confidenciou Rosie a Kathrine, a única vez que correra uma maratona antes de Boston em 1980 tinha sido em Nova Iorque, no ano anterior.

Switzer tinha conhecimento de causa. Sabia quais eram os esquemas de treino, os métodos para apurar velocidade e resistência e questionou a glorificada vencedora (ainda se estava no pós-corrida) sobre como se tinha preparado para conseguir rapar tanto tempo de um ano para o outro. Que era como quem dizia, de uma maratona para a outra. "Apenas treinei", fugiu Rosie Ruiz.

Fugiu a estas suspeitas, mas não a todas as que a cercaram. Os organizadores fizeram uma apurada investigação e perceberam pela análise de mais de dez mil fotografias do último quilómetro e meio, além de vários testemunhos, como o de pelo menos uma pessoa, que Rosie apenas tinha entrado na corrida a uma milha do final (cerca de quilómetro e meio).

Rosie manteve-se irredutível: ganhou limpinho, limpinho. E por isso conservou a medalha até ao fim. Apenas um defensor da mulher de Havana veio a público, já em 1996, desmenti-la. "Ela saltou da multidão, sem saber que a primeira mulher ainda não tinha passado. Acreditem em mim, ela ficou tão chocada como qualquer pessoa quando percebeu que era a primeira a cortar a meta", confessou Steve Marek, que dirigia um clube de atletismo em Westchester e garantiu que foi a própria Rosie quem lho contou meses depois da maratona de Boston de 1980.

A verdade é que a confusão de Boston levou a uma investigação em Nova Iorque - a outra maratona que Rosie admitia ter corrido, em 1979. A fotógrafa Susan Morrow disse ao New York Times que tinha feito parte do percurso com Rosie Ruiz no metro durante a maratona e que este lhe contara que tinha desistido na marca das 10 milhas (16,090km). A sina de Rosie começara aí a ficar traçada. Um voluntário marcou a sua "chegada" à meta, pensando tratar-se de uma atleta lesionada, mas os juízes reviram as imagens de vídeo e anularam a participação de Rosie.

Depois de Boston, Rosie Ruiz não mais foi vista a correr desportivamente, mas teve de andar da perna para tentar não ser apanhada noutros esquemas. Sem sucesso. Em 1982 foi acusada de falsificação de documentos após ter roubado dinheiro e cheques da empresa onde trabalhava como contabilista. Passou uma semana na cadeia e ficou cinco anos com pena suspensa. Antes de acabar esse período, logo no ano seguinte (1983), foi apanhada a vender cocaína em Miami a polícias à paisana. Esteve três semanas na prisão, recorda o The New York Times.

Finalmente, numa história de enganos, até a notícia da sua morte surgiu de forma dissimulada. Um colaborador do siteLetsRun viu um link para a notícia da morte de uma tal de Rosie M. Vivas, padecendo a um cancro. Rosie, já divorciada, tinha tido esse nome enquanto foi casada com Aicardo Vivas, pai dos três filhos (Francisco, Reynoldo e Gilberto) que viviam com ela em Lake Worth, Florida, numa casa que partilhava ainda com o irmão Robert Ruiz e a amiga Margarita Alvarez.

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