Morreu o símbolo de uma Baía que Jorge Amado tanto admirou

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ACM passou de apoiante da ditadura a defensor do regresso à democracia

António Carlos Magalhães era médico, mas há 50 anos que ninguém se lembrava disso. Nem no Brasil nem na Baía, estado de que era senador federal, depois de ter sido, várias vezes, governador, deputado e prefeito de Salvador. Ao ponto de o próprio ACM, como a imprensa lhe chamava, ter assumido que o "carlismo" era sinónimo de poder. Pelo menos entre os baianos que até às eleições de Outubro do ano passado nunca lhe tinham sido infiéis.

Personagem incontornável do nordeste dos coronéis e do candomblé, António Carlos Magalhães fez e desfez governos no Brasil, tendo chegado, por uma única vez, a ser a ministro. Do presidente José Sarney, com quem partilhou a transição da ditadura para a democracia, além do simbolismo dos caciques nordestinos.

Mas a experiência durou pouco e ACM regressou rapidamente à Baía, onde possuía um pequeno império de media. Não espanta, por isso, que outro símbolo do baianismo, como era Jorge Amado, tivesse dito um dia que admirava ACM, provocando o maior dos escândalos entre os seus antigos companheiros do velho Partido Comunista Brasileiro.

Os mesmos que tinham sido perseguidos pela ditadura militar em que António Carlos Magalhães se apoiou , aceitando, por exemplo, ser designado prefeito de Salvador.

"Toninho", explicou o autor de Gabriela, Cravo e Canela, "é a Baía, cara e entranhas, o sim e o não".

E era. Para os seus inimigos, aqueles para quem ACM era apenas e só o símbolo do nepotismo e da corrupção, ele era o Toninho Malvadeza. Para os amigos, ele era o Toninho Ternura. O sim e o não de que falava Jorge Amado.

Sem que o próprio ACM, que há três anos foi obrigado a demitir-se do Senado para não perder o mandato por suspeitas de corrupção, regressando nas eleições seguintes, tivesse notado alguma vez qualquer contradição no seu percurso.

Populista, agressivo, sedutor e perseguidor implacável, ACM projectou-se com a ditadura para se transformar posteriormente num dos responsáveis pelo regresso da democracia, em 1985. Nessa altura, e enquanto a maioria da ARENA se dividia entre as candidaturas de Paulo Maluf e de Mário Andreazza, o baiano não hesitou. Juntou-se a Sarney, Marco Maciel e muitos outros, permitindo que o Congresso elegesse o candidato da oposição à sucessão do general João Figueiredo: Tancredo Neves.

Começava aí o período áureo do o "carlismo", de que ACM tanto se orgulhava e que o levaram a exibir publicamente o apoio de 395 dos 417 prefeitos da Baía.

Mas a morte prematura do seu filho e herdeiro político, Luís Eduardo Magalhães, deitou tudo a perder, em 1998. Quer do ponto de vista pessoa, quer político.

Prova disso foi a derrota que o Partido dos Trabalhadores (PT), criado por Lula em meados dos anos 80 em São Paulo, lhe impôs há nove meses na Baía, fazendo eleger Jacques Wagner para governador.

É certo que o próprio ACM não era candidato à eleição. Mas apoiava o governador em funções: Paulo Souto, que ia alternando com o próprio António Carlos Magalhães e com César Borges, o exercício das funções, fosse qual fosse a sigla das suas candidaturas. De início, foi a do Partido Democrático Social (PDS), que sucedeu à Arena. Seguiu-se a do Partido da Frente Liberal (PFL). Agora, era a do Partido dos Democratas (DEM).

Pouco importa. Para os baianos, ACM era ACM. E para os presidentes que se seguiram a Tancredo Neves e José Sarney também, já que António Carlos Magalhães foi essencial para que Fernando Collor de Mello e e Fernando Henrique Cardoso pudessem governar. Ao contrário do que sucedeu com o PT e com Lula.

Ontem, ACM não resistiu, morrendo na sequência de complicações renais e cardíacas, num hospital de São Paulo. Tinha 79 anos. Mas o facho do "carlismo" já foi erguido pelos seu suplente como senador: o seu filho António Carlos Magalhães, que completará o resto do mandato do pai. O tempo suficiente para que o deputado federal António Carlos Magalhães - o ACM Neto, de 28 anos - possa assumir a 'herança'.

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