Morreu João Lobo Antunes

Neurocirurgião tinha 72 anos. Morreu um "grande português", afirmou Marcelo Rebelo de Sousa
Publicado a
Atualizado a

O neurocirurgião João Lobo Antunes morreu hoje aos 72 anos. Era "um dos últimos grandes príncipes da medicina", lembra o bastonário da Ordem dos Médicos, e um "grande português" e figura ímpar, nas palavras do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa.

Foi médico, neurocirurgião, professor catedrático, conselheiro de Estado, autor de livros científicos e de ensaios, biógrafo de Egas Moniz, Prémio Pessoa, numa carreira brilhante, que começou com a licenciatura em Medicina, com uma média final de 19,47 valores. Aos 72 anos era presidente presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.

Licenciado em Medicina pela Universidade de Lisboa, foi professor catedrático de neurocirurgia da Faculdade de Medicina de Lisboa e foi diretor de serviço de neurocirurgia do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. O neurocirurgião dedicou-se principalmente ao estudo do hipotálamo e da hipófise.

No ano passado, foi-lhe atribuído o Prémio Nacional de Saúde 2015, altura em que foi recordado como o primeiro médico da história a implantar um olho eletrónico num cego, um implante que desde então já foi feito em 15 invisuais, permitindo-lhes ver algumas formas e distinguir certas cores.

No último dia de 25 de Abril recebeu das mãos do Presidente da República a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade. "[Lobo Antunes] Tem sua pesquisa, ensino, prática, magistério pessoal e institucional ligados ao domínio da saúde, contribuindo de forma relevante e com excelência também para a efetivação deste direito fundamental", afirmou, nesse dia, o Presidente da República.

Lobo Antunes confessou na altura o que fazia ficar orgulho: foi ter tratado dos meus pares, dos que me procuravam - gente humilde, gente importante -, todos iguais no sofrimento, naquele encontro singular que é a clínica, na procura de um consolo, de uma esperança".

Já antes tinha recebido a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique e a Grã Cruz da Ordem Militar de Sant'Iágua de Espada.

Depois de agraciado em 1996 com Prémio Pessoa, recebeu em 2003 a Medalha de Ouro de mérito do Ministério da Saúde e em 2013 o Prémio da Universidade de Lisboa.

Foi Vice-Presidente para a Europa do World Federation of Neurosurgical Society (1990), Presidente da Sociedade Europeia de Neurocirurgia (1999-2003), do Conselho Superior de Ciência, Tecnologia e Inovação (2003-2006), da Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa e da Academia Portuguesa de Medicina e Professor Convidado da Universidade de Pequim.

A nível político, foi mandatário nacional das candidaturas presidenciais de Jorge Sampaio, em 1996 e de Cavaco Silva em 2006.

Com Cavaco Silva, Lobo Antunes fez depois parte do Conselho de Estado.

A reação do Presidente da República

"Uma palavra muito grande de homenagem e de evocação em relação ao prof. João Lobo Antunes.

Apresentando as condolências à família, trata-se de uma figura ímpar porque era ao mesmo tempo um grande académico, um grande intelectual, com uma cultura riquíssima e vastíssima. Uma figura cimeira no domínio da saúde, e não só. Em geral. Da ética das ciências da vida, foi mesmo presidente da Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. E que, em todas estas facetas, mostrou uma excelência que o fazia ser respeitado pelos seus pares da medicina, pelos seus inúmeros alunos e pelos seus doentes, pelos seus admiradores do ponto de vista cultural e pelos mais variados setores da vida nacional.

É uma perda de um amigo, mas é também a perda de um grande português"

[artigo:4888267]

Em 2015, por ocasião do lançamento de uma coletânea de ensaios dispersos confessava que tinha "dificuldade em encontrar uma justificação para esta decisão porque considero que uma obra nova deve trepar silenciosamente pelos escaparates e ali ficar, com pouco alarido, até que alguém curioso o pegue e leve. Talvez tenha sido a hora de exprimir a gratidão."

Também em 2015, num artigo de opinião publicado no Diário de Notícias, recordou os seus tempos de criança e a entrada na escola.

Uma memória dos tempos de infância: "A mãe, que era a favor das avaliações, entendeu que como preparação para o exame de admissão ao liceu eu teria de fazer o exame de instrução primária"

Fui para a escola aos 4 anos. Tinha aberto na altura um colégio lá para os lados de S. Domingos de Benfica com todos os tiques da moderna pedagogia, onde os meninos aprendiam também inglês. Lembro-me disso porque a respectiva professora me deu uma bofetada por ter desenhado no quadro uma lua e, quando perguntou como se chamava aquilo em inglês, eu respondi "banana". A recordação desse tempo não é amável: sujava regularmente as calças por uma incontinência nervosa. Aprendi a ler sem saber como, o que me distinguiu dos meus irmãos, que foram todos ensinados pela Mãe. A Mãe quando não cozia, lia, mas não tinha ido além da 4.ª classe, dizia ela, por ser "mandriona".

A passagem pelo tal colégio foi fugaz e fiz a escola primária no Externato D. João da Câmara, mais conhecido como o "Colégio do Sr. André". O colégio estava instalado numa pequena moradia na Avenida Gomes Pereira, em frente ao que era então a sede do Sport Lisboa e Benfica. Nela viviam o Sr. André, a Sra. D. Adelaide (a "Senhora") e a mãe da "Senhora". D. Adelaide, segundo meu Pai, fora uma beldade em rapariga, embora a face sardenta estivesse marcada pelas "bexigas". O Sr. André era baixo, musculado e careca, ensinava de manhã numa escola pública lá para a Venda Nova, e só aparecia depois de almoço para o terror de todos, porque tinha a mão pesada e distribuía com surpreendente liberalidade bofetões e puxões de orelhas. Chegava, sentava-se à secretária, dormitava, arrancava com movimentos bruscos os pêlos negros, enormes, que lhe saíam das narinas, e começava por dizer "ora hoje como é Domingo", afirmação corrigida em coro pela classe. Tudo isto se passava em duas salas de aula minúsculas, crucifixo, mapas de Portugal, do mundo e do corpo humano, na parede. De manhã tínhamos outros professores e a "Senhora" ajeitava-se com a 1.ª e a 2.ª classe, embora me pareça que não tinha habilitações para tal. Na 4.ª classe tive o primeiro mestre que me marcou, e o primeiro que, diligentemente, me corrigiu a escrita.

Ia a pé para a escola. Atravessava a Estrada de Benfica e passava a capelista, a funerária, um restaurante chamado apenas Casa de Pasto - nome que me intrigava -, e a barbearia que fazia a curva para a Avenida Gomes Pereira. Na esquina havia a loja onde comprávamos os "bonecos da bola", que embrulhavam rebuçados transparentes de um sabor levemente anisado. A avenida era cruzada por um ribeiro, a que chamávamos o "caneiro", que no Inverno se enchia numa torrente suja de origem obscura.

O colégio era frequentado pelos filhos da modesta burguesia de Benfica, mas também pelo filho do barbeiro, que era de uma inteligência brilhante e veio a desempenhar cargos importantes numa grande multinacional. No princípio da semana, no intervalo do almoço, sentávamo-nos à sua volta e ele contava-nos o filme que vira no cinema do Benfica durante fim-de-semana. Imitava o cowboy, o xerife e os índios, com uma tal mestria e tal vivacidade que aqueles eram momentos mágicos, que dispensavam totalmente o celulóide. Concluída a narrativa, voltávamos para a sala, não sem antes darmos a volta no jardim batendo bem com as botas para a soltar o pó, já que a "Senhora" não queria que lhe sujassem o chão encerado como um espelho. No colégio também passou por pouco tempo o filho da dona do "lugar" da fruta, que depois fez carreira no rock. Um dia apareceu na escola com um molho de fotografias "indecentes", demonstrando detalhes anatómicos e proezas fisiológicas que nos estarreceram. Também me ensinou uma lição para a vida. Eu possuía um canivete e ele um molho de "bonecos da bola". Ele sugeriu que trocássemos os nossos haveres. Recebi os bonecos e dei-lhe o canivete, uma troca pouco inteligente. A seguir propôs que jogássemos ao "virinhas", que era um jogo em que cada um colocava um boneco virado ao contrário e com uma pancada seca, com a mão em concha, tentávamos virá-los. Pediu-me emprestado um boneco, começámos a jogar e ele ganhou o maço todo. Aprendi então a desconfiar dos profissionais de qualquer vício.

Alguém guardou as provas que fiz na 3.ª classe em Dezembro de 1952: ditado (16 valores) por faltar uma preposição; redacção ("O cão é um ser dotado de inteligência"), 13 valores; caligrafia ("por causa dos lobos que havia por aqueles sítios, levava consigo o seu cão de guarda"), 12 valores, e aritmética ("gasto diariamente 0,125 do meu dinheiro. Enquantos [sic] dias gastarei todo o dinheiro?"), 18 valores apesar de as respostas estarem todas certas.

É claro que hoje em dia aquele colégio não teria qualquer possibilidade de existir, mas a verdade é que os seus alunos, que, no final, se dividiam em dois grupos - os que iam para o liceu e os que partiam para as escolas comerciais e industriais -, acabavam por ter excelentes resultados nos exames.

A Mãe, que era a favor das avaliações, entendeu que como preparação para o exame de admissão ao liceu eu teria de fazer o exame de instrução primária. As tias assistiram, fazendo tricot, sentadas nas carteiras. Não esqueço a pergunta cuja resposta falhei: "Porque é que uma galinha quando é atropelada oferece alguma resistência?" Eu duvidei da resistência e achei a pergunta muito estúpida. A resposta certa era: "Porque é vertebrada e tem esqueleto."

No meio dos meus papéis encontrei um folheto de apresentação do "programa cinematográfico" da Esplanada do Sport Lisboa e Benfica, onde a escola publicitava os resultados dos exames oficiais da 3.ª e 4.ª classes realizados em Julho de 1954.

O anúncio descreve orgulhosamente: "100% - 28 alunos propostos a exame e 28 aprovações - 100%."

E concluía: "N.B. - Não matricule o seu filho numa escola ao acaso."

No exame de admissão ao liceu tive Muito Bom em tudo excepto desenho. Na redacção de português lembro-me de ter escrito esta frase retumbante: "Eis que tropeça e cai desamparadamente no solo!", para descrever um acidente de uma velhinha, ajudada depois por um rapaz de bom coração. Os avaliadores tiveram igualmente bom coração e deram-me Muito Bom. Tive "suficiente" na prova de desenho, que constava do desenho de uma jarra, com o necessário sombreado, e não consegui respeitar a simetria das suas ancas largas. O avô paterno obrigava-nos a levar para as provas a sua caneta Parker 51, com um biquinho quase invisível. A nossa preocupação era dupla: responder às perguntas e não estragar a caneta. Na prova oral, a professora começou por aludir à minha face sardenta, dizendo para minha vergonha: "Pareces mesmo um ovinho de perdiz!"

E assim entrei no Liceu Camões, cumprindo a tradição familiar, e onde recebi a segunda demão ...

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt