Morreu Augusto de Athayde (1941-2014)
Conheci o Augusto através de um trisavô seu, o herói do meu livro Os Cantos. Quando, pela primeira vez, lhe telefonei a perguntar se tinha papéis do seu antepassado convidou-me para ir jantar a sua casa. Foi então que me lembrei de que já ouvira falar dele. Deveria andar pelos 14 anos, quando a minha mãe, que era amiga da sua, me falara de um menino bem-comportado que tocava piano. Bastou isto para me recusar a conhecê--lo. Ao ler, muito tempo passado, as memórias da Sr.ª D. Maria da Graça Hintze Ribeiro Jardim, sua mãe, percebi o motivo que a aproximara da minha: não era apenas a Acção Católica que as unia, mas o facto de ambas terem atravessado, sem desfalecimento, a crise provocada pela ruína dos maridos.
Seja como for, a minha mãe nunca conseguiu convencer-me a ir até ao palácio da Rua do Alecrim, onde o Augusto vivia. Entretida a conquistar o maior número de "brasas" que comigo se cruzavam em Cascais, duvido que aquele menino gordo - e é assim que ele se descreve em Percurso Solitário - me tivesse impressionado favoravelmente. Quarenta anos depois, eu era - e, se calhar, ele também - outra pessoa. Não foi apenas por ser trineto de José do Canto que dele gostei, mas porque, num país de gente uniforme, me pareceu um ser livre.
Uma autobiografia (digo-o por experiência própria) tem de ser honesta, o que não é o mesmo que verdadeira. Da vida, e do seu relato, não há versões científicas. Há, apenas, e é muito, a disposição para nos expormos, naquilo que temos de bom e de mau. Augusto foi capaz de nos falar, com amor, das extravagâncias do pai e de nos relatar, com ironia, as conversas com ele tidas sobre as prostitutas de Ponta Delgada. A certa altura, conta, o pai solicitara à dona do bordel que costumava frequentar que lhe fizesse um desconto, ao que esta lhe terá respondido: "Agustinho, meu menino, escusas de estar com essas conversas: aqui os preços são físicos" (terá querido dizer fixos).
Sempre mencionou, sem sentir necessidade de se justificar, a sua adesão ao marcelismo, como afirmou, sem reticências, que os portugueses viviam, após o 25 de Abril, "com maior paz e menor sofrimento". Nunca detectei nele o menor traço de ressentimento, snobeira ou arrogância. Tinha antes uma genuína preocupação com a pobreza, "opressiva, injusta e angustiante". Finalmente, possuía um sentido de humor que fazia as minhas delícias. Depois do AVC que sofrera há alguns anos, ainda me fez rir com as descrições, através do seu telemóvel, dos tratamentos a que estava a ser sujeito no hospital. A última vez que nos vimos foi na Fnac do Chiado, onde eu fora apresentar uma pequena obra sobre o jardim que o seu trisavô plantara. Foi de árvores que começámos a falar e foi a conversar sobre árvores que, sem saber, nos despedimos.