Moro did it again
Esta podia ser a história da raposa paga pelo fazendeiro para tomar conta do galinheiro. Do gato cientista que adora fazer experiências com ratinhos. Ou do veterinário cujo hobby secreto é a taxidermia, arte de embalsamar animais.
Podia ainda ser a história do árbitro que expulsa um jogador de uma equipa e após o apito final se torna dirigente da outra. Ou a do pugilista que quebra o nariz do rival no ringue e a seguir é pago dar opiniões na sala de cirurgia.
Os exemplos no mundo animal e no mundo do desporto servem só para simplificar a noção de "conflito de interesses", cuja definição mais económica possível é "situação em que um interesse secundário influencia o julgamento profissional de um interesse prioritário", mas que ao longo dos tempos motivou intermináveis debates, teses, calhamaços, enunciados, discussões e controvérsias nas esferas jurídica, financeira, empresarial e política.
Ora, os académicos que no futuro acrescentarão argumentos aos intermináveis debates, teses, calhamaços, enunciados, discussões e controvérsias sobre a questão do "conflito de interesses" vão ter de dedicar um capítulo inteirinho a Sérgio Fernando Moro, o juiz da Operação Lava-Jato que se tornou ministro da Justiça e da Segurança Pública do governo de Jair Bolsonaro depois de na pré-campanha mandar prender o líder das sondagens Lula da Silva.
O mesmo Sérgio Moro que é desde esta semana sócio-diretor da Alvarez & Marsal.
Na firma norte-americana de consultoria global, Moro vai, disse ele, "ajudar as empresas a fazer a coisa certa"
Entretanto, uma dessas empresas a serem ajudadas pelo ex-juiz e ex-ministro será a Odebrecht.
Sim, a construtora cujo dono o próprio Moro condenou a 19 anos de prisão, cumpridos na sua mansão em troca da assinatura de um acordo de delação com o ex-juiz; a tal que se afundou em dívidas de 65 mil milhões de reais após a Operação Lava-Jato; a mesma que foi obrigada a despedir 80% dos funcionários na sequência do escândalo.
Moro, acredite, vai dar opiniões sobre a recuperação da Odebrecht - lembra-se do pugilista que desfaz o nariz do adversário e depois segura o bisturi na sala de operações?
O próprio ex-juiz e ex-ministro declarou, no seu estilo perentório, "não haver conflito de interesses".
Mas é, praticamente, o único a pensar assim.
"A contratação de Moro fecha o ciclo de uma prática comum de atuação dos interesses dos EUA no mundo", disse o Partido dos Trabalhadores em nota. "Ocorreu no Iraque, quando após a Segunda Guerra do Golfo as empresas norte-americanas passaram a operar as grandes obras do país."
O candidato presidencial Ciro Gomes chamou Moro de "malandrão". "Mais uma vez fica sob a luz difusa do abajur lilás com discursos de integridade e anticorrupção. O povo brasileiro está atento!"
Para o ex-senador Roberto Requião, "é tudo escancarado: a Odebrecht contrata uma empresa, que contrata Sérgio Moro, para trabalhar na sua defesa? Você ainda acredita nesta gente?".
Até os seus acérrimos defensores, como o senador Major Olímpio, veem conflito de interesses onde Moro não vê. "Não deu um tiro no pé e sim no próprio saco", resumiu, sem meias-palavras.
Pelo meio, os seus pares, ouvidos pelo site jurídico Conjur, falam em "situação inusitada" e "jabuticaba", expressão usada para classificar coisas que só acontecem no Brasil.
"Depois de integrar como ministro o governo que ajudou a eleger ainda quando era juiz, é muita "versatilidade"", disse ironicamente o advogado Eduardo Carnelós. "O Brasil não é para amadores", acrescentou o jurista Lênio Streck.
A Ordem dos Advogados do Brasil, entretanto, já notificou Moro para prestar esclarecimentos.
Poderá prestá-los a partir da sua nova morada, em Washington DC, ali bem pertinho da Casa Branca mas cada vez mais longe do sonhado Palácio do Planalto.