Morangos lançam Primavera nas ruas da Baixa de Lisboa
O sol da Primavera fez desaparecer as castanhas dos assadores estacionados nas ruas de Lisboa e trouxe a fruta. Há cerca de 15 dias que Pedro e Filipa Gaspar vendem morangos no Rossio entre as 10.30 e as 19.00. Chega-se a Março e as "quentes e boas" já "não dão", mas "as despesas são as mesmas". Por outro lado, pode ser cedo para chegar um gelado ao paladar. Por isso, a venda de fruta parece ser a solução ideal para os meses mais "parados"- Março, Abril, Maio -, que os vendedores ambulantes de castanhas e gelados enfrentam.
Filipa Gaspar tomou a iniciativa. Viu passar na rua o vereador José Sá Fernandes e abordou-o. "Perguntei-lhe se havia a possibilidade de mudar os nossos 'estatutos' na câmara para também vendermos fruta. Mostrou-se interessado e pediu para que marcasse uma reunião nos Paços do Concelho", contou ao DN. A reunião aconteceu há cerca de um ano e foi o primeiro passo para que o pedido se tornasse real, depois de partilhado por muitos colegas da Associação de Vendedores de Castanhas e Gelados da Região de Lisboa. A autorização saiu em Maio passado, mas, até 7 de Outubro, a associação fez duas exposições para que o despacho que contemplava a venda de fruta na rua não exigisse o pagamento da taxa em duplicado (ver caixa em baixo).
A ideia não é nova, mas agora, pela força de uma iniciativa, é legal. Antigamente, vendia-se muito e de tudo. Eram outros tempos e o negócio da fruta nas ruas da capital tornava-se até numa aventura. "Na altura vendia fruta a fugir à polícia", conta Pedro. Havia algumas "malandrices". "Os cartuchos [onde os clientes levavam a fruta] estavam colados com cimento", e assim eram mais pesados. E surgem mais histórias, que só os olhos da memória alcançam com precisão. Por isso, Pedro, de 32 anos, que desde novo trabalha na venda ambulante, recordou: "Quando se vendiam pêssegos, no fundo dos cartuchos ia uma maçã, porque era mais barata." Bem perto, na Pastelaria Carmelita, na Rua do Carmo, ainda resistem fotografias dos tempos antigos. Numa, vê-se o pai de Pedro a vender castanhas. A mãe de Filipa, flores. E, ao lado, uma banca de fruta - retrato de 1985.
A venda ambulante é uma tradição de família. Pedro conta com 20 anos no ofício. O lugar onde hoje está no Rossio já era do pai. Filipa, de 31 anos, vende há sete. Estudou até ao 12.º ano e tirou um curso de administrativa pelo centro de emprego. Depois de trabalhar naquela área descobriu que "sentia a falta da liberdade da rua, de conviver com pessoas tão diferentes". Um gosto que já vem dos tempos em que, nas férias escolares, ajudava a avó com as flores.
Ambos afectos à profissão conhecem não só as histórias do passado mas também as regras que o presente veio traçando. Os tempos modernos exigiram mudanças que obrigam a ter tudo conforme manda a lei. Actualmente, os morangos "passados" são retirados imediatamente para um balde. E assim é que deve ser, concordam. "Muita gente que vem aqui passa por água e come... tem de ser tudo muito rigoroso", lembrou Filipa. Também já não há "balanças de braço". A "nova licença" exige uma balança aferida, sujeita a vistorias, mostrou, adiantando que é proibido vender junto a frutarias.
Embora em algumas ruas já se vendam gelados, àquela banca só chegam no final do mês. Nessa altura, o casal divide-se. Filipa fica com os gelados e a água no Rossio. A fruta sobe ao Chiado com o marido. Talvez cerejas. Podem também vender mangas, abacaxis e damascos. Durante todo o ano, mas apenas duas daquelas variedades ao mesmo tempo.
Por enquanto, os morangos são reis de terça-feira a sábado ao fundo da Rua do Carmo. Vermelhos, graúdos e criados por cá atraem clientes e curiosos que não estão habituados a ver morangos "tão grandes", sobretudo na rua. O quilo custava dois euros e meio, mas a tendência é que desça. O preço, para alguns ainda alto, não desanima. Por dia vendem em média 30 caixas de cinco quilos. Alguns clientes são atraídos pela cor. Outros pelo aroma natural. "Fui tomar café e cheirou-me aos morangos, devem ser bons", disse Manuela Pereira, depois de comprar.
A pequena banca de inox, cheia de morangos, tornava-se ainda apelativa para tirar fotos. Além das que já se avistam, devem surgir mais bancas de fruta, adiantou Filipa. São as raízes do passado de regresso às ruas da capital numa versão dos tempos modernos.