Moção do Chega recriou divisão entre esquerda e direita
Afinal, quando se pensava que a morte da "geringonça" tinha ditado o fim da fratura esquerda/direita na organização das posições políticas no Parlamento, a moção de rejeição apresentada pelo Chega ao programa do novo Governo, ontem chumbada, veio provar que não é bem assim.
Sendo certo que a moção só colheu os votos favoráveis dos 12 deputados do partido proponente, a verdade é que, ao mesmo tempo, colocou de um lado a direita parlamentar e do outro a esquerda. A esquerda votou contra: 133 votos conjugados do PS, PCP, BE, PAN e Livre; e a direita à direita do PS (PSD e Iniciativa Liberal ), não tendo votado a favor também não votou contra: 81 abstenções.
Chumbada a moção, o XXIII Governo Constitucional entra a plenitude de funções. A votação do texto do Chega concluiu ontem um debate de dois dias, debate que revelou também o primeiro choque entre o novo presidente da Assembleia da República, o socialista Augusto Santos Silva, e o líder do Chega, André Ventura.
Citaçãocitacao"Permita-me que o interrompa para lhe dizer que não há atribuições coletivas de culpa em Portugal."
Tudo aconteceu quando, no púlpito, Ventura disparava genericamente contra a "comunidade cigana" por causa de supostos crimes cometidos por membros da etnia. Santos Silva interrompeu-o nessa altura dizendo - e sendo aplaudido de pé por deputados de várias bancadas (ultrapassando aliás as divisões esquerda-direita): "Permita-me que o interrompa para lhe dizer que não há atribuições coletivas de culpa em Portugal. Solicito que continue livremente a sua intervenção, como é seu direito, respeitando este princípio."
A seguir, o líder do Chega retomou o discurso, prometendo que não aceita que "nenhum outro deputado, ou presidente da Assembleia, limite" a sua intervenção parlamentar. Mais tarde, já depois de chumbada a sua moção de rejeição, apresentaria um voto de protesto ao presidente da AR queixando-se de "censura". "Desde o 25 de Abril que não acontecia um tamanho ato de censura sobre um partido e um grupo parlamentar."
Citaçãocitacao"O orador é advertido pelo Presidente da Assembleia da República quando se desvie do assunto em discussão ou quando o discurso se torne injurioso ou ofensivo, podendo retirar-lhe a palavra."
Santos Silva voltou então a explicar sinteticamente que atuou baseado no que está previsto no Regimento da Assembleia da República (nº 3 do artº 89): "O orador é advertido pelo Presidente da Assembleia da República quando se desvie do assunto em discussão ou quando o discurso se torne injurioso ou ofensivo, podendo retirar-lhe a palavra." Nas redes sociais, o assunto gerou rapidamente intensa discussão.
Tirando este choque, o debate foi o que se esperava: todos contra o Governo. E o tema dominante foi o mesmo do primeiro dia: o facto de o Governo recusar mexer nos salários para fazer face ao aumento da inflação.
Abrindo a sessão, o novo ministro da Economia, António Costa Silva, ainda admitiu a hipótese de um novo imposto sobre empresas. não podemos hostilizar as empresas, mas o que vamos fazer é falar com elas e provavelmente considerar um imposto, um windfall tax [taxa de imposto sobre lucros que resultam de ganhos inesperados de empresas ou setores específicos], para os lucros aleatórios e inesperados que estão a ter", disse, em resposta ao Bloco de Esquerda (que por várias vezes ao longo do debate falou na Galp, EDP e grupo Jerónimo Martins como exemplos de empresas que estão a fazer lucros suplementares com a inflação). "As pessoas estão a ser roubadas no cartel dos supermercados e nos combustíveis", acusou o líder da bancada bloquista, Pedro Filipe Soares. Um outro deputado do BE, José Soeiro, sugeriria depois a urgência de um "aumento intercalar" de salários para fazer face ao aumento da inflação, e tanto no setor público como no privado.
Pelo lado do PCP, Jerónimo de Sousa procurou salientar que a disponibilidade da nova maioria absoluta do PS para o diálogo interpartidário é apenas retórica. "O PCP trouxe a este debate cerca de três dezenas de soluções e compromissos concretos (...). Não houve uma que o PS ou o Governo dessem perspetiva de querer corresponder e assim deixaram levar pelo vento as vãs proclamações de abertura e disponibilidade para o diálogo e para a convergência", disse. Para logo de seguida acrescentar que a recusa do Executivo em aumentar os salários para acompanhar a inflação significa apenas uma coisa, que "o Governo está a dizer que serão os trabalhadores e os reformados a pagar a crise."
À esquerda, só Rui Tavares, deputado único do Livre, se revelou mais suave com a maioria PS. Tavares foi o único a falar da UE para lá da perspetiva normal de "cargos ou dinheiro" pressionando António Costa para que este ative sanções contra a Hungria pelo facto de o seu primeiro-ministro, Viktor Órban, estar a "minar por dentro" a solidariedade europeia com a Ucrânia ameaçando comprar petróleo à Rússia diretamente em rublos. A própria Inês Sousa Real, agora deputada única do PAN, abandonou o tom contemporizador da última legislatura para afirmar que o programa de Governo "vai precisar de muitas voltas" para ser cumprido.
À direita, o PSD, através de António Proa, apertou o Executivo - no caso o novo ministro do Ambiente, Duarte Cordeiro - pelo facto de o programa de combate à pobreza energética ter um horizonte de cumprimento a 30 anos. A IL, pela voz de Rodrigo Saraiva, criticou o programa de Governo por ser apenas "corta e cola" do de 2019: "Vira o disco e toca o mesmo."
O Governo avança agora para a discussão do novo OE2022. Segunda-feira, o primeiro-ministro apresentará suas linhas gerais aos partidos.
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