A vontade de ajudar o próximo e de participar em algo que acreditava ser do interesse de todos levou-o às terras africanas durante a guerra colonial. Percorreu milhares de quilómetros, contactou com as populações locais e acalmou o espírito dos soldados, numa missão que durou 12 anos.
«Em Catió [na Guiné] rezava-se o terço todas as noites ao entardecer, debaixo de umas árvores», conta Armado Jorge Silva que, em 1962, era o capelão de serviço da sua companhia. «Cantávamos a seguir ao primeiro, terceiro e quinto mistério. Depois, terminávamos e voltávamos para dentro da caserna. O comandante começou a reparar que só sofríamos ataques de flagelação quando já tínhamos terminado de rezar. "Qualquer dia peço-vos para ficarem aí a noite inteira", dizia-nos eles.» O facto é que, como Armando veio a descobrir mais tarde, os olhos da guerrilha inimiga estavam cravados em todos eles e escolhiam aquela altura propositadamente para atacar. «Vim a encontrar um deles mais tarde, já feito prisioneiro, que me disse, em jeito de confissão: "Quando íamos foguear no Catió, ouvíamos o canto e a reza. Alguns cantavam e rezavam também e, só depois, fogueávamos".» Isto soube o capelão Armando numa altura em que já se preparava para ir para casa, em Trás-os-Montes, 12 anos depois da primeira comissão.
Armando Jorge Silva nasceu em Vilar de Maçada, na escola onde a sua mãe trabalhava. Era ali que viviam também, conforme preceitos da época. A sua ama era igualmente professora. Armando só poderia vir a ser um homem dedicado à educação. Ingressou no seminário no início da escolaridade e já não saiu. Ali ficou como professor e pedagogo durante os anos que se seguiram.
Tudo parecia encaminhado mas, em Março de 1961, dois acontecimentos, com a diferença de 15 dias, ditam-lhe o futuro: a morte do pai e o início da guerra colonial. Para não deixar a mãe sozinha, pede transferência para um outro colégio a dez quilómetros de casa. Mas o pedido não é satisfeito e é levado a escolher entre regressar ao seminário ou seguir para o Ultramar. Escolheu a segunda: «Nessa primeira comissão achei que ia defender a pátria e os nossos concidadãos, mas, tal como muitos outros, com o andar dos tempos chegávamos à conclusão de que havia outros interesses e motivações.» Isso não o dissuadiu de voltar mais duas vezes. Ao todo foram três comissões que «me deram uma visão conjunta sobre aquele período».
Tratar das almas
«A 19 de Fevereiro de 1962 cheguei à Guiné, onde estive dois anos.» Os capelães tinham como missão dar conforto espiritual aos militares: «Recebíamos a formação no seminário e depois tínhamos de adaptá-la no terreno às contingências», conta. O que não era fácil: «Para quem não conheça nada da tropa, ter de se apresentar graduado e fardado como alferes e não como padre, e estar introduzido numa estrutura muito hierarquizada, fazia que colocar a boina, fazer continência ou calçar as botas se tornassem verdadeiros desafios. Aprendi a fazer tudo sozinho e discretamente.» Um capelão era, afinal, um dos elementos-chave em que se firmava o bem-estar moral das tropas. «Tinha de mostrar aptidão e transmiti-la.»
A primeira companhia onde esteve ajudou-o na sua missão, já que ali estavam inúmeros açorianos. «Eram extremamente religiosos, o que também fez que tivesse de dar mais de mim. Na Páscoa de 1962, por exemplo, fizeram um caminho de flores e de serrim até ao interior da caserna, como nas festas do Espírito Santo. Havia ainda um grupo que era devoto do Senhor Santo Cristo.»
O dia-a-dia, inserido numa corporação, era passado a rezar a missa, o terço e, sobretudo, conversar: «Era indispensável criar um ambiente de diálogo e convívio e ir conhecendo as pessoas.» Mas também foi necessário arranjar forma de passar o tempo, quando todos se dedicavam aos seus afazeres. Os jogos de cartas na sala do oficial de dia eram uma opção. «Tudo passava por ali e acabei por perceber o funcionamento das coisas.»
Mais do que questionar o sentido da vida ou da morte, os soldados precisavam de ajuda para resolver questões do coração, as saudades e a falta de notícias da família ou ainda quezílias internas. «Naquele ambiente constroem-se grandes amizades mas também havia desentendimentos. Quando se passa muito tempo junto no mesmo espaço, sem condições, a sofrer com os mosquitos, a falta de comida e de água e longe de todo o conforto, surgem os atritos», revela. O capelão servia igualmente de ponte entre os soldados e os oficiais, ajudando por vezes a suavizar alguns castigos.
Cinema paraíso
Numa lógica de elevação do moral das tropas, o capelão Armando comprou uma super 8 e um projector. Com ela filmava o dia-a-dia dos soldados, que depois mostrava para puro deleite dos jovens. Alguns filmes do cómico Charlot também fizeram por ali a sua estreia.
Por vezes deixava a farda e mostrava os seus dotes como extremo-esquerdo de uma das equipas de futebol organizadas entre as tropas: «Em Luanda, onde estive durante a segunda comissão, chegámos a ficar em segundo lugar.»
Ficam por contar as aventuras de guerra, os sustos apanhados e os milhares de quilómetros feitos, sob risco da própria vida: «Entre 1 de Fevereiro e 2 de Agosto de 1966 realizei 59 viagens, 9935 quilómetros, e visitei vinte localidades.» É obra. Por isto e pelo «constante amparo e elevados dotes morais», «espírito de sacrifício e abnegação, indiferente ao perigo, contribuindo para elevar o moral dos militares antes, durante e depois dos combates», recebeu um louvor e, mais tarde, uma condecoração de mérito militar. Este «serrano de rija têmpora», conforme era descrito no louvor referido, deixa escrita a sua história. São mais de seiscentas páginas, em que enquadra a sua aventura, na moldura maior que é Portugal durante o Estado Novo. Passos na Vida é o nome da obra, porque à vida não se dá nome. Vive-se da melhor maneira, para chegar ao fim com a sensação de missão cumprida.