Ministério acordou aumentos que podem não ser automáticos para todos os médicos

Um dia depois de o Ministério da Saúde ter assinado um acordo de valorização salarial com o Sindicato Independente dos Médicos, a confusão está de volta. Afinal, este acordo pode não ser automático para todos os profissionais, segundo a própria tutela, que está a estudar o instrumento legislativo para o aplicar. Para o SIM o acordo é só para os seus associados. Para a FNAM "tal não é possível". Um jurista especialista na área do Trabalho, contactado pelo DN, diz que a questão "é complexa" e que pode ter as duas leituras.
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Afinal, o que fica das 36 reuniões que durante 19 meses juntou à mesma mesa e no mesmo processo negocial o Ministério da Saúde, a Federação Nacional dos Médicos (FNAM) e o Sindicato Independente dos Médicos (SIM)? Pois bem, fica um processo marcado por alguma confusão. Desde logo porque, poucas horas depois de o Ministério da Saúde ter assinado um acordo com o SIM, terça-feira ao início da noite, surge a dúvida se este compromisso vai abranger de forma automática todos os médicos ou não.

Ontem à tarde, ainda não era claro para a própria tutela como é que os médicos que não são sindicalizados ou os que são sindicalizados na FNAM vão ter acesso a este acordo. O DN questionou o ministério sobre se o acordo era para todos os médicos ou não e foi-nos dito que, neste momento, "o Ministério da Saúde ainda está a ultimar os termos concretos da sua operacionalização, que será concretizada em 1 de janeiro de 2024".

A resposta deixa dúvidas, mas, depois, a mesma fonte explicou que o que poderá acontecer é não ser automático para todos os médicos, podendo os profissionais ter de dizer se querem ser abrangidos pelo acordo ou não. Tudo irá depender do "instrumento legislativo que venha a ser fechado pelo governo para a aplicação do acordo", especificaram ao DN.

No comunicado lançado no dia anterior, o ministério assinalava este acordo com o SIM, como "uma solução que garante a estabilidade do funcionamento do SNS, pilar do acesso à saúde em Portugal, tendo a mesma sido aceite por um dos sindicatos". E que "sem prejuízo, o aumento salarial agora acordado vai aplicar-se a todos os médicos, privilegiando as remunerações mais baixas".

Mas durante o dia de ontem, o secretário-geral do SIM veio anunciar que este acordo abrangeria só os sócios do seu sindicato. Ao DN, sublinhou que o acordo "irá abranger os médicos com contratos em funções públicas, que são a esmagadora maioria dos que estão nos cuidados primários, e os que têm contratos de trabalho individual sindicalizados no SIM".

A presidente da FNAM reagiu ao DN dizendo que tal "não é possível", garantindo ter base jurídica para fundamentar, que "os novos valores remuneratórios que se vão aplicar aos médicos a partir de 1 janeiro, aplicam-se a todos os médicos especialistas e até aos médicos internos, sindicalizados ou não, que trabalham no SNS".

O DN contactou o advogado Filipe Lamelas, especialista na área do Trabalho, que considera que "a questão é complexa, a sua discussão não é de todo clara e a sua aplicação pode ter as duas leituras". Aliás, salvaguardou, "os próprios tribunais não são unânimes nesta matéria, havendo decisões que confirmam as duas perspetivas, ou se quisermos os dois argumentos jurídicos".

O advogado destaca que o que está aqui em causa "é o confronto de dois direitos ou de dois princípios. O princípio da filiação sindical, porque numa negociação coletiva, de um sindicato com um empregador, esta só abrange os filiados desse sindicato". E, neste sentido, "à partida, e em teoria, o Sindicato Independente dos Médicos tem razão, porque este acordo só seria aplicado aos seus associados", mas o argumento jurídico que vale para contrariar o princípio da filiação é o do "salário igual para trabalho igual, mas tanto um como outro são argumentos falíveis".

Por isso, reforça, "a questão é complexa e a sua discussão não é de todo clara, há pessoas que se pronunciam a favor do princípio da filiação, como um princípio mais ao menos absoluto - e que deve ser aplicável no sentido em que quem não é sindicalizado não pode usufruir desse acordo. Há quem defenda o princípio da igualdade, salário igual para trabalho igual".

Questionado sobre se esta questão seria constitucional, já que nenhum trabalhador é obrigado a ser sindicalizado, Filipe Lamelas confirma que, de facto, "nada obriga a um trabalhador a filiar-se, mas o princípio da filiação também é um principio constitucional. Por isso, o que temos aqui é um conflito de direitos e princípios, o da filiação sindical e o da igualdade, e há opiniões para ambos os sentido. O que se tem de fazer aqui é medir, digamos assim, este conflito e ver o que deve prevalecer". ​​​

"O que o Estado, que não é um empregador normal, é um empregador público, pode definir é um mecanismo de extensão a todos os médicos para garantir igualdade. Agora se me pergunta para qual das medidas me inclino mais, defendo sempre que o princípio da filiação sindical deve prevalecer".

A classe médica, depois de um acordo que foi só assinado por um sindicato - cujo secretário-geral reconhece não ser "um acordo que satisfaz por completo, mas foi o acordo possível e sempre é mais do que os 3% para toda a função pública" - vai ter de esperar mais tempo para saber quem será abrangido ou o que terá de fazer para ter também tais aumentos salariais.

Pelo menos, há 24 mil médicos que vão ter de esperar pelo mecanismo legislativo que está a ser definido pela tutela. Isto tendo em conta que o SIM diz contar hoje com cerca de sete mil sócios e a FNAM com quase dez mil (3895 no sindicato do Sul, 3114 no do Norte e 2700 no do Centro, o que dá um total de 9704 sócios", dos 31 mil médicos que trabalham no SNS, 21 mil especialistas e 10 mil internos.

DestaquedestaqueAcordo define um aumento salarial de 14,6% para médicos em início da carreira, 12,9% para assistentes graduados e de 10,9% para assistentes graduados. No caso dos internos, o aumento é de 15,7% para os internos do quarto ano e seguintes, de 7,9% para os médicos que estão a frequentar o primeiro, segundo e terceiro anos da especialidade, e de 6,1% para os internos do ano comum.

Mas, afinal, o que foi conseguido neste acordo? Segundo a tutela, este acordo define um aumento salarial de 14,6% para médicos em início da carreira, 12,9% para assistentes graduados e de 10,9% para assistentes graduados. No caso dos internos, o aumento é de 15,7% para os internos do quarto ano e seguintes, de 7,9% para os médicos que estão a frequentar o primeiro, segundo e terceiro anos da especialidade, e de 6,1% para os internos do ano comum.

Para o SIM, que, na semana passada tinha manifestado disponibilidade para discutir só a questão salarial, como o governo pretendia, e para chegar a um compromisso, este "foi o acordo intercalar possível que dará aos médicos um aumento de 400 euros mensais (valor bruto, sem descontos)", mas, reconhece, "este acordo não esconde a incompetência deste ministério e deste governo na dificuldade de fixar médicos no SNS".

Já a FNAM, que manteve sempre a posição de negociar "um acordo global, que envolvesse condições de trabalho e valorização salarial", e que rejeitou a ideia de um acordo intercalar, este "não permite garantir o que vem a seguir, [por isso] é um mau acordo".

Do lado do ministério, este "longo do processo negocial", exigiu "um enorme esforço para ir ao encontro das reivindicações das estruturas sindicais, tendo como princípio uma solução que reforce o SNS e um quadro de responsabilidade orçamental e equilíbrio entre as carreiras da administração pública".

Mas há outra questão: Porque é que a FNAM não aceitou este acordo? Joana Bordalo e Sá explica: "Fomos para esta reunião com a mesma estratégia que temos desde o início: chegar a um acordo global, porque não é só a grelha salarial que interessa. Nós queríamos discutir os pontos considerados fundamentais, até na proposto conjunta dos dois sindicatos, como a reposição das 35 horas semanais, das 12 horas de urgência e dos cinco dias suplementares de férias para gozar em época baixa, que nos foram retirados (no tempo da Troika) e que são importantes para os médicos e até para a organização dos serviços".

Só que a tutela "apenas quis discutir a grelha salarial e apresentámos a nossa proposta, assente no valor hora base da tabela do regime de dedicação plena, aprovada pelo próprio Governo e publicada em Diário da República, a 7 de novembro". Até porque, especifica, "não foram colocados limites à entrada de médicos neste regime, e, portanto, haveria orçamento para negociar o mesmo valor hora para todos os médicos".

Ora, "começámos por um valor hora de 50 euros para todos os médicos, pois o ministério tinha admitido que poderia chegar a ele. E se assim fosse, permitia um aumento da ordem dos 30%, que era o que reivindicávamos, mas a tutela disse que não. Nós recuámos para os 48 euros, já que este é o valor da tabela da dedicação plena, e que ainda dava a todos médicos um aumento de 22%. E isto estávamos dispostos a aceitar, mas a tutela rejeitou também, apresentando uma proposta que para nós não fazia sentido".

A negociação que agora termina começou na primavera de 2022, ainda em conjunto com FNAM e SIM, depois passou a uma negociação em separado, devido às divergências entre as duas estruturas, sobre a forma como a tutela a estava a conduzir e, agora no final, voltou a juntar os dois sindicatos à mesma mesa com uma proposto conjunta, mas termina sem consenso total.

O SIM diz estar já a preparar o "reinício das negociações", a FNAM diz que irá esperar pelos novos interlocutores, mas que vai manter "a mesma estratégia de acordo global". Por agora, e só esta semana, o SNS tem mais de 30 serviços de urgência com constrangimentos por falta de médicos.

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