Minha mãe preta era uma bruxa
Minha mãe preta era uma bruxa. O rosto coalhado de rugas e a boca sem dentes. Uma índia cuspida do mato no meio da cidade, como ela mesma dizia, antes de soltar a gargalhada infernal. O nome dela era Jurema, "espinho suculento" em tupi-guarani, a língua dos caetés, povo selvagem do litoral brasileiro. Selvagem e antropófago. Os caetés devoraram dom Sardinha, religioso nascido em Évora, primeiro bispo do Brasil. Não só ele, mas toda a desafortunada tripulação da nau encalhada no São Francisco. Quem mandou ter nome de peixe? Melhor sorte conheceu dom Leitão, o substituto do bispo. Escapou ileso. Vai ver os caetés não gostavam de porco.
O bispo deve ter tremido diante da morte, mesmo de batina e todo paramentado. Branco morre de medo de morrer. Os caetés, não, nunca. Para morrer, basta estar vivo, repetia Jurema, entre uma cachimbada e outra. O fumo fedorento a incensar a nossa casa, na bucólica Olinda da minha infância. Olinda, a Marim dos Caetés.
Um dia, Jurema chegou lá em casa cuspida do mato. Meus pais sempre trabalharam muito, todo dia, o dia todo. Muito trabalho e pouco dinheiro. O menino não podia ficar sozinho. Precisava de uma ama. Jurema olhou para aquele curumi magrelo e de pele amarelada. Escarrou a dúvida no chão. Ia ficar. Sou tua mãe preta, disse.
Minha mãe preta me criou feito índio. Catava-me os piolhos cantarolando uma canção ou uma reza, numa língua estranha. Achei um boi, avisava, e estalava o parasita com as unhas encardidas. Unhas de mãos igualmente encardidas, que amassavam o feijão com o arroz até formar um bolo castanho, servido no almoço direto na minha boca.
Os caetés não usam garfo e faca. Nem para comer bispo.
Minha mãe preta era uma bruxa. Fez o feitiço para o curumi magrelo e amarelo virar um rapaz parrudo e corado. Preparava uma galinha ao molho pardo, o sangue grosso e escuro como mel, como nunca mais comi na vida. Sentávamos os dois no chão de terra, a rasgar a carne com os dentes e a chupar o sangue fazendo barulho, como os caetés.
Eu andava na rua de peito nu e descalço. O sol a queimar a pele. O couro do pé uma lixa, o calcanhar rachado, um casco. Pisava no cimento quente, em pedra e vidro, e nada sentia. Os meninos da rua, penteados, de sapato e a camisola por dentro da calça, zombavam de mim, "lá vem o índio, lá vem o índio", mas eu não ligava.
Preferia ouvir o assobio dos pássaros, dos curiós e bem-te-vis.
Só perdia a cabeça quando colocavam a mãe no meio. Da mãezinha de Deus não falavam. Mas um dia, um dos meninos chamou a mãe preta de bruxa. Não prestou. Era mais velho e mais alto do que eu. Fiquei cego. Não vi idade, não vi tamanho. Pulei no pescoço dele. Olho arregalado. Pelo eriçado. Unhas para fora. Berro. Uma fera.
Mordi o menino no braço. Ele fugiu chorando, "o índio me mordeu, o índio me mordeu". Voltei para casa com o sangue na boca. Sabia ao molho pardo que a mãe preta fazia. Das duas uma: ou sangue de gente tem o mesmo gosto do sangue de galinha, ou a mãe preta não cozinhava com sangue de galinha, mas de gente.
Uma vez, perguntei à mãe preta se ela já tinha comido carne de gente, como os caetés. Não, respondeu ela, ainda não, e deu uma baforado no cachimbo fedorento. Quem gosta de carne de gente é o homem branco, disse. Todo domingo, o homem branco vai para a igreja, reza, come o corpo e bebe o sangue de outro homem, falou, entre cachimbadas.
Minha mãe preta era uma bruxa sem caldeirão. Preferia um pequeno rádio de pilha para ver o futuro. Num dia, eu estava no olho de um pé de manga quando ouvi lá de baixo o rádio falar em democracia, na saída dos militares. Já vai tarde, disse a mãe preta, e cuspiu no chão. O rádio da bruxa não mentia. Tempo depois, os militares se foram.
Apesar do rosto coalhado de rugas e da boca desdentada, Jurema era namoradeira. Aos sábados, arrumava os cabelos negros, lisos e compridos em frente ao espelho pequeno, pregado na parede do quartinho lá de trás. Saía para rua cheirosa feito mão de barbeiro. Um perfume que ela mesma fazia, amassando folha de rosa com a de maracujá.
Jurema namorava o vendedor de mandioca, o vendedor de coco e o vendedor de frutas. Todos, ao mesmo tempo, que ela não era besta, dizia, soltando em seguida a gargalhada infernal. Na mesa lá de casa, a mandioca era sempre macia, uma papinha, a desmanchar na boca. O coco verde, docinho, e as frutas maduras, sem tapurus.
Minha mãe preta era uma bruxa e foi dela o feitiço para eu crescer forte e bonito. As raparigas olhavam para mim de um jeito diferente. Aos sábados, eu também arrumava o cabelo e botava o perfume de folhas amassadas de rosa e maracujá, e saía para namorar. Olha, só, que o menino está viçando, dizia, orgulhosa do rapazote namorador.
Um dia, caí doente e sem forças. Não tinha apetite para nada. A mãezinha de Deus levou-me para tudo quanto era médico, mas sem um diagnóstico preciso. A mãe preta só precisou de arrancar com as mãos magras e venosas um chumaço do meu cabelo. Catou com os dedos o novelo escuro e achou dois fios amarrados num nó cego.
O menino está amarrado, disse. É feitiço de mulher.
A mãe preta era bruxa e não tinha medo de mau-olhado. Saiu pela manhã e voltou no fim da tarde com umas plantas dentro de uma sacola de supermercado. A minha fraqueza só fazia aumentar. Vou morrer?, perguntei. Para morrer, basta estar vivo, respondeu Jurema, mergulhando as plantas numa panela com água sobre o fogão.
Em seguida, mandou-me ir à casa de banho e ficar nu. Eu já era um rapaz, não mais o curumi de antes, tinha pelo em baixo do braço e nas vergonhas. Jurema percebeu o meu embaraço. Deixa de besteira, menino, falou. Tira logo essa roupa, que eu já limpei os teus fundos, ordenou a bruxa, irada. Aquiesci e despi-me.
A mãe preta voltou para a cozinha e retornou à casa de banho com a panela fumegante nas mãos. Jurema passou a esfregar os ramos pelo meu corpo, de cima para baixo, enquanto repetia uma cantilena indecifrável. As folhas murchavam ao tocarem a minha pele. Debilitado, desacordei assim que a bruxa encomendou o feitiço.
Noutro dia, acordei refeito, com a disposição de quem dormiu o sono de uma semana.
Lembrei-me de Jurema pois esta semana a mãezinha disse que a minha velha ama desapareceu. Não desaparecer como um eufemismo de morrer. Desapareceu, mesmo, ninguém sabe do paradeiro dela. Sumiu. Minha mãe preta foi vista pela última vez a andar pelo mato. Vai ver, foi engolida por ele, o mesmo mato que a cuspiu tempos atrás.
Assim que terminei o texto, um perfume de rosas e maracujá invadiu a janela.