Minha língua, minha terra

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A conferência decorreu na sala de imprensa do Centro de Congressos de Lisboa. Era sobre "o envelhecimento das pessoas com deficiências", e cerca de cem marcaram presença. A primeira interlocutora era portuguesa e começou, como esperado, a falar em português. Mas depois de já ter começado na língua materna, parou abruptamente. "Devo continuar em inglês, porque há estrangeiros na sala", disse. Seguiu-se um momento flutuante na sala, mas a interlocutora retomou o fio aos seus pensamentos em inglês, como se nada se tivesse passado. Seguindo-a, o novo interlocutor, também português, começou logo em inglês e com admirável facilidade, permitindo-se até a um certo traço humorístico na língua de Shakespeare ..., que não entendi!

A intérprete para linguagem gestual parecia um pouco perdida, por alguns instantes deixou cair os braços e permaneceu imóvel até retomar a dança engraçada com os seus dedos e dar corpo a essa linguagem que é universal. Como era uma sala de imprensa "youspeakenglish", sem um dispositivo de audição de tradução, resolvi ir almoçar. No restaurante, questionei o empregado sobre a possibilidade de beber um copo de vinho, e ele respondeu-me num inglês impecável. "No wine. But you can have pepsi if you want!". Eu reagi: "WHAT?" Quer dizer, "O QUÊ?" Será que os organizadores queriam evitar a ira de alguns, poucos, muçulmanos presentes no evento?, para quem teria sido fácil dirigir água e sumo? Ou estavam com medo de uma tarde sonolenta na linha da frente dos participantes? Não sei, mas de vinho, nada. Uma aberração quando conhecemos a beleza dos vinhos portugueses. Uma oportunidade perdida para dar a conhecer os produtos do "terroir" (território). No restaurante reservado aos chefes de governo, ministros e suas delegações, o menu era apenas em inglês. Não havia a mínima sombra de referência a umas deliciosas "lascas de bacalhau em crosta de milho" ou ao "lombo de porco com batatas a murro". Nada, nothing. Estava tudo num inglês que toda a gente entende, até eu. É óbvio que o uso do idioma inglês para a organização de uma cimeira ou conferência internacional faz sentido. Mas ignorar totalmente a língua portuguesa, precisamente na altura em que o primeiro-ministro António Costa, reivindica o reconhecimento do português como língua oficial na sede da ONU - uma língua que será falada por 400 milhões de pessoas em 2050, tornando-a numa das maiores do mundo - não me parece bem.

Em Lisboa, Porto e Faro, infelizmente, já foi apanhado há muito tempo o anglicismo, que invadiu as ruas e as montras. De "Little Portugal" a "So Sweet" passando por "Cut&Cool" ... tudo é bom para se nomear. Curiosamente ou não, os franceses que se instalam nas cidades portuguesas mantêm o idioma: "Ma Belle Baguette", "Café-Croissant" ou outro "Comme chez moi". Jogam com a diferença, aquela que aplicam em Londres ou Nova Iorque, onde a gastronomia e pastelaria francesas são vistas como chiques e de bom gosto. Muitas vezes, esquecendo que essas referências não funcionam tão bem em Portugal. E se se quer irritar um lusitano basta criticar as sobremesas e o pão. Em Berlim, Veneza ou Praga, cidades de grande azáfama turística, as referências estrangeiras não vão além do que significam: um restaurante estrangeiro, onde se oferece comida estrangeira. Em Portugal, às vezes, não há a preocupação de se valorizar o seu produto, a sua marca, a sua qualidade e a sua versatilidade. Uma imagem ruim começa com uma autoestima pobre. Onde está a identidade? A primeira coisa que um emigrante irá dizer quando lhe perguntarmos sobre o que sente mais falta do seu país de origem será certamente a comida e o idioma. Para Portugal, o que está em jogo é a cultura e a diferença, as ligações com a comunidade da diáspora e com os países da antiga expansão. E com ele, a nossa identidade, a nossa referência, a nossa sensação de pertença. Longe, longe do nacionalismo, quando vivido como um suplemento de diferença, de complementaridade e de originalidade. Então, "youspeakenglish" sim, mas só de vez em quanto.

Notas: Este artigo foi escrito no momento em que alguns comentadores portugueses qualificaram de "patois" a língua catalã. Para reduzir as pretensões independentistas de uma região que nunca se poderá safar sem o espanhol (língua e estado). Mais uma vez qual a identidade, qual é?

Os nomes em inglês e em francês foram inventados, e se existirem é mera coincidência.

Correspondente da Radio France Internationale

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