A sinfonia não engana: naquele espaço vivem cães, muitos cães. Mas melodia canina tão audível está longe de preparar o visitante para a receção que vai encontrar. Mal o portão se abre, são muitos os animais que nos assaltam, saltam, pulam, ladram... Todos querem mimos e brincadeira - dos grandes aos mais pequenos. Estamos no Cantinho da Milu, talvez o maior abrigo canino do país, no concelho de Palmela, onde vivem cerca de 800 cães. Não é engano, são mesmo oito centenas. A maior parte deles abandonados pelos seus donos e que ali encontraram quem os tratasse bem... mas todos eles à espera de um novo dono, de alguém que os adote e lhes dê ou devolva um lar..As surpresas continuam. A primeira é o espaço: 2,5 hectares abertos, com sombras de árvores e as casotas de madeira a lembrar bungalows onde os habitantes do Cantinho dormem. Todas as casotas têm um espaço exterior considerável para que os cães possam exercitar-se, há um dispensador de água automático e comida sempre à descrição. Lá dentro, cada um tem a sua cama, agora no inverno com mantas... que, na verdade, alguns roem e destroem. Segunda surpresa, o ambiente: os cães que estão soltos andam felizes, numa correria sem fim, sempre à procura de alguém em quem se empoleirar - seja os funcionários ou voluntários que trabalham no cantinho, seja os visitantes que pretendem adotar... ou até mesmo aqueles que vão entregar um cão porque já não o querem. Mas isso eles não sabem e recebem-nos da mesma maneira.. Não são todos soltos ao mesmo tempo. Os animais também têm os seus feitios, nem todos se dão bem, uns são maiores do que outros, e há que evitar confusões. Enquanto uns se passeiam pelo espaço, outros permanecem nas boxes, espaçosas, à espera da sua vez. Já houve tempos em que quem ali trabalha sabia de cor o nome de todos os animais. No início, quando o Cantinho abriu, eram 80, agora são quase 800 e a tarefa tornou-se impossível. Nem Milu, a mulher que há 11 anos criou este espaço, já consegue decorar os nomes..Tudo começou com Twice. Esta história começou a ser escrita em 1993, no dia em que Emília Silva, que todos tratam por Milu, encontrou no Marquês de Pombal (Lisboa) uma cadelinha bebé em muito mau estado - foi-lhe diagnosticada uma parvovirose e teve de ser operada aos intestinos. Milu chamou-lhe Twice - é dela a imagem do Cantinho da Milu - e terá sido a grande responsável pelo rumo que a vida desta mulher de 61 anos tomou. Em Angola, em Chineca Mungo (Huambo), onde nasceu e viveu até 1975, desde criança que Milu deu largas à sua paixão por animais. Chegou a ter 18. Quando tinha 7 anos, conta, recolheu uma cadela nas bombas de gasolina - deu-lhe o nome de Fina, o mesmo da marca dos combustíveis. "A Fina tinha a doença da raiva e mordeu a várias pessoas, mas olhe, nunca me mordeu.". Twice foi a primeira cadela de Milu em Portugal. Cada cão abandonado, doente ou maltratado com que se cruzava, ela recolhia. Começaram a ser tantos que mudou de um apartamento para uma moradia, depois, em 2007, comprou um terreno na Arrábida para os abrigar. Mas deparou-se com as exigências legais e não lhe permitiram construir um abrigo. Há 11 anos comprou este terreno com 25 mil metros quadrados no concelho de Palmela. A ideia inicial incluía pessoas: construir um lar de idosos e um espaço para os seus animais, para que na velhice não tivessem de se separar das suas companhias. Mais uma vez esbarrou nas leis e aquele que era o seu projeto de vida esfumou-se..Mas era preciso criar condições para os animais que ia ajudando. "Então pensei, vou fazer metade associação para acolher os animais e metade hotel para poder rentabilizar." Só que foram chegando cada vez mais animais e a associação ganhou terreno. Literalmente o terreno todo.. De repente, a vida de Milu era o cantinho. Uma vida dedicada aos animais, sem férias ou descanso semanal. Por isso, denuncia cansaço físico e muita preocupação com o futuro. "Deixou de ser um sonho para ser uma realidade da vida." Cerca de 800 cães comem por dia 330 quilos de ração, é preciso pagar aos seis funcionários, aos veterinários e à Segurança Social, as vacinas, os medicamentos, os desparasitantes, as esterilizações... Há a conta da luz que é sempre avultada. Os materiais para construir novas casas de madeira para os animais - porque estão sempre a chegar..Todos os dias fazem-se máquinas de roupa para lavar as mantas... e as máquinas não duram muito tempo porque estragam-se com tanto pelo e areia. Já aconteceu o Cantinho ter de pedir doações de detergente no Facebook.. Apesar da luta para manter o abrigo a funcionar e dar as melhores condições aos animais, ainda vão acontecendo "milagres". Como a Casa dos Velhinhos, uma espécie de lar de idosos que é o "orgulho" da equipa e que foi possível construir através de uma campanha de crowdfunding. Ali estão os mais velhotes, os que querem sopas e descanso e já não acompanham a energia e a irrequietude dos mais jovens. "São os mais pacholas e, em regra, acabam a sua vida aqui", diz Sílvia..O sonho proibido de construir uma clínica veterinária. Como é que Milu consegue manter este projeto de pé? "Contando sempre os tostões, sempre com o coração nas mãos." O Cantinho vive das doações, das quotas dos sócios e dos apadrinhamentos, mas não tem subsídios estatais. Por isso, Milu tem um sonho: construir uma clínica veterinária no terreno adjacente, a preços controlados, que ajudasse a sustentar o Cantinho e permitisse a sua sobrevivência. Mas, diz Milu, a Câmara de Palmela não autoriza, alegando que o PDM não permite. Realista, Milu teme pelo futuro do Cantinho e dos seus animais. "Sei que não duro para sempre e, por isso, queria ter aqui alguma rentabilidade. As pessoas vão conhecendo, vão dando uma ajuda, mas não ajudam sempre. Por isso, digo aos responsáveis da câmara 'quando eu morrer, os 800 animais ficam todos para vocês'.". Neste sábado em que visitámos o Cantinho da Milu, foram deixados quatro cães pelos seus donos, mais dos que foram adotados nesse dia. Milu sempre quis ajudar os animais, mas nunca pensou que houvesse tanto abandono em Portugal. E não são só os rafeiros que lá são deixados, os cães de raça também. A que se juntam alguns que ficam à guarda da instituição e que são trazidos pela União Zoófila ou pelo SEPNA - Serviço de Proteção da Natureza e do Ambiente..Entre esses estão cerca de uma dezena que faziam parte dos mais de cem animais retirados a uma mulher em Arruda dos Vinhos - estão todos juntos, mas alguns ainda revelam sinais do trauma, como a cadela que desata a tremer quando alguém olha para ela. "Tem medo. Estavam muito maltratados", explica Sílvia, a voluntária que nos guia pelo abrigo.. Abandonos e histórias tristes. "As pessoas cansam-se dos animais, como se fossem brinquedos. Chegam aqui com eles para os deixar e fazem um pranto ao portão. Já não tenho paciência. Se vão mudar de casa e não têm espaço para o cão, então têm de pensar nisso antes de comprar a casa", diz, por sua vez, a proprietária do Cantinho. Quem trabalha no abrigo, seja voluntário ou efetivo, já conhece de cor todas as "desculpas" de quem lá vai deixar os seus cães: os filhos têm alergias, mudaram de casa, vão para o estrangeiro, o senhorio não aceita os animais, o cão era de um dos pais que morreu.... Mas estes são os casos em que os donos, mesmo com desculpas, vão entregá-los em mão.no Cantinho da Milu. Porque há quem se limite a deixá-los com a trela atada ao portão ou os atire por cima das redes, sem se importar se o bicho se magoa. Mas também há situações muito tristes, de pessoas que mesmo querendo não podem ficar com os animais. Como a senhora muito doente que deixou dois pequineses que estão para adoção conjunta. Ou a do velhote que ia para o lar depois de o filho morrer num acidente de moto e, após deixar o seu animal no Cantinho da Milu, foi encontrado pela GNR com o carro parado na autoestrada a chorar.... Adoção: Neli tem novos donos.João e Ana Pires decidiram procurar o Cantinho da Milu porque queriam adotar o seu primeiro animal. Foi uma decisão muito ponderada e por isso assumiram uma adoção responsável. Vão levar Neli, de 6 meses, mas Ana admite que lhe vai mudar o nome. A cadelinha já está preparada, meteram-lhe uma coleira e uma trela cor-de-rosa, enquanto os responsáveis do abrigo explicam aos novos donos todos os cuidados a ter com a alimentação e a saúde dela - os animais saem do Cantinho já com vacinas e com chip, cuja informação será posteriormente alterada com os dados do novo dono, em cedência de propriedade. Levam também o Manual do Adotante.. "Há muito tempo que queríamos um animal e no ano passado encontrámos uma cadelinha na rua. Quando nos estávamos a habituar à ideia de ficar com ela, os donos apareceram", conta Carla. Comprar um animal era algo completamente despropositado para este casal e quando souberam do Cantinho através das redes sociais contactaram Milu. "Não faz sentido quando há aqui mais de 700 animais para adotar", explica Ana, adiantando que lhe "faz impressão escolher". O casal pediu um cão que fosse pequeno e calmo e confiou no Cantinho da Milu para para lhe dar um novo amigo de quatro patas, neste caso uma amiga..Nem todas as adoções correm às mil maravilhas. Milu e Sílvia lembram-se bem do sábado em que já ao fim do dia todo o pessoal do abrigo teve de ir nos seus próprios carros até a uma estação de serviço do Alentejo. "Tínhamos dito aos adotantes para terem cuidado quando abrissem a porta do carro porque a cadela podia fugir. Na primeira vez que pararam foi isso que aconteceu. Depois de um dia de trabalho, todos muito cansados, a chover, metemo-nos nos nossos carros e fomos até lá.". A saga durou dias, montaram armadilhas, mas nada. As funcionárias da estação de serviço viam a cadela a andar no mato, mas ninguém a conseguia apanhar. Até que Milu um dia disse "estou farta disto", pegou numa trela e lá foi ela à procura do animal. A cadela apareceu logo e trouxeram-na de volta para o Cantinho - não foi entregue aos adotantes porque mostraram que não sabiam cuidar dela. Os animais nutrem um sentimento especial por esta mulher. No Cantinho, se há um ajuntamento de cães é porque Milu está por ali. Adoram-na, como ela a eles. E mesmo com tantas dificuldades, o lema de Milu impõe-se: "Lutar, nunca desistir.".(Notícia publicada a 29 de janeiro, atualizada a 21 de fevereiro com a informação de que é neste local que estão nove dos 18 cães galgo inglês que foram apreendidos ao cavaleiro tauromáquico João Moura, indiciado pelo crime de maus tratos a animais de companhia)