Milos Forman: o último voo de um cineasta insubmisso
Um cineasta checo que trouxe loucura embrulhada em cinema para Hollywood. Ele, Milos Forman, morreu neste sábado, aos 86 anos, nos Estados Unidos. "A sua partida foi tranquila e esteve o tempo todo rodeado pela família e amigos", informou a mulher, Martina. O contraste é bonito, e deve ser sublinhado: o homem que levou à grande tela personagens desvairadas e insubmissas, parte deste mundo num quadro de serenidade.
O Amadeus Mozart de Tom Hulce, a "turma" liderada por Jack Nicholson, o Larry Flynt de Woody Harrelson, e o Andy Kaufman de Jim Carrey prestam-lhe homenagem. Forman viu nestas figuras um brilho humanista. Hoje o seu legado é indissociável de uma ideia de rebeldia perfeitamente encaixada no classicismo da indústria americana.
Nascido Jan Tomas Forman, a 18 de fevereiro de 1932 em Caslav, na então Checoslováquia, o futuro cineasta passaria grande parte da infância num internato para órfãos (os pais morreram no campo de concentração de Auschwitz, quando tinha 9 anos). Mais tarde, estudou na Academia de Artes Cénicas de Praga, e o seu primeiro grande sucesso foi Os Amores de Uma Loira (1965), título nomeado para o Óscar de melhor filme estrangeiro, numa altura em que a crítica internacional acompanhava de perto a Nova Vaga de cineastas checos que ele integrava (Vera Chytilová, Jiri Menzel, Ivan Passer...).
Antes desse filme de inquietação juvenil, Forman já tinha no currículo outra longa-metragem de ficção, Ás de Espadas (1964), a que somaria apenas mais um título em solo nacional. O Baile dos Bombeiros (1967), primeira fita a cores, com uma vincada crítica ao sistema político do seu país, foi então a despedida.
Na sequência da invasão de Praga pelas tropas soviéticas, em 1968, Milos Forman refugiou-se em Paris, onde tinha "sossego" para escrever o seu próximo filme, e depois nos Estados Unidos, onde se fez cidadão. O ano de 1971 assinala o início de outra fase na sua filmografia: Os Amores de uma Adolescente (com a colaboração de Jean-Claude Carrière no argumento) é não só a sua primeira produção em língua inglesa, mas o filme que estabelece um diálogo entre o que fez antes e o que viria a defini-lo em Hollywood. A saber, uma tendência para a insubordinação, que adquiriu uma expressão plena no seguinte Voando Sobre Um Ninho de Cucos (1975).
Com efeito, este acabou por ser o título que o lançou para a linha da frente da indústria americana. A história baseada no romance de Ken Kesey - autor de referência da contracultura, que depois da passagem por uma instituição psiquiátrica, aos 27 anos, colocou por escrito a sua experiência no interior do hospício - já tinha tido uma exemplar adaptação nos palcos, com Kirk Douglas no papel do protagonista Randle Patrick McMurphy. Foi o próprio ator quem comprou os direitos da adaptação, reconhecendo depois que não poderia voltar a fazer a personagem - era preciso alguém mais jovem. O filho, Michael Douglas, avançou com a produção e Jack Nicholson brilhou como protagonista, esse homem que incutiu a revolução nos doentes de um hospital psiquiátrico. O resultado foram 5 Óscares nas categorias principais (melhor filme, realizador, ator e atriz, e argumento adaptado), em 9 nomeações, algo que não acontecia desde 1934, quando Uma Noite Aconteceu, de Frank Capra, ganhou as mesmas estatuetas.
Em suma, falamos de uma produção marcada por um drástico realismo, em que Forman entrou no próprio núcleo de um hospício, incluindo doentes e pessoal médico na figuração, para escrutinar os métodos de tratamento psiquiátrico. O seu sucesso teve que ver também com esta postura de filme incómodo, "malcomportado", que olha de frente a realidade mais áspera.
No seguimento desta etapa áurea, o musical Hair (1979) e Ragtime (1981) - o último centrado nas tensões raciais que tiveram lugar em Nova Iorque no início do século XX - seriam obras de transição para outro excelso momento perante a Academia de Hollywood. O seu nome é Amadeus... e, depois dele, nunca mais se ouviu o Requiem de Mozart sem aquela estranha sensação de este esconder entre as notas musicais a gargalhada estridente de Tom Hulce.
Com efeito, Amadeus (1984) representou uma segunda inesquecível ocasião para Forman, que recebeu o seu também segundo Óscar de melhor realizador, pelas mãos de Steven Spielberg, numa cerimónia conduzida por Jack Lemmon. A essa estatueta juntaram-se mais 7 (melhor filme, melhor ator, argumento adaptado, direção artística, som, guarda-roupa e maquilhagem), porque desta vez era um filme que, no inverso do realismo cru de Voando Sobre um Ninho de Cucos, crescia em sofisticação formal.
O que esta biografia do compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart mantém desse primeiro grande sucesso do realizador é a queda para o mau comportamento. A verdade é que Forman achava entediantes os filmes russos e checos sobre compositores, e quis fazer a sua própria versão - simultaneamente, clássica e contra os clássicos, a mostrar a língua ao registo convencional. O tom foi dado pela peça homónima de Peter Shaffer, a que o cineasta assistiu maravilhado, solicitando depois a sua colaboração (qual cereja em cima do bolo, Shaffer seria um dos contemplados com a estatueta dourada).
Ainda num registo de época, Milos Forman realizou também Valmont (1989), adaptação do romance epistolar de Chorderlos de Laclos, As Ligações Perigosas, dir-se-ia numa saudável competitividade com a versão de Stephen Frears, do ano anterior. Apesar deste filme do realizador não ter sido tão bem recebido, é muito injusto que se olhe para a sua arte dramática como inferior à de Frears (basta lembrar a extraordinária Merteuil de Annette Bening).
Por sua vez, Larry Flint (1996), sobre o polémico editor norte-americano de pornografia cujo nome se lê no título, valeu ao cineasta a terceira e derradeira nomeação para o Óscar de melhor realizador. E antes de mais uma biografia artística - Os Fantasmas de Goya (2006) -, Jim Carrey deu rosto ao comediante Andy Kaufman no fabuloso Homem na Lua (1999). É para lá que segue Milos Forman.