Milícias populares e outras milícias

A origem histórica do termo 'milícia' quase se confunde com a fundação da nacionalidade.<br />
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Na edição de 26 de Fevereiro, o DN titulava, ao alto da página 19, "Grupo de milícias populares agride jovens". O antetítulo situava o acontecimento ("Vila Real - zona de Pioledo foi palco de violência no Carnaval") e o pós-título incluía informação complementar ("PSP acusada de ter poucos efectivos; um dos feridos continua internado").

A jornalista Diana Andringa, que o provedor considera uma das referências de rigor e qualidade na profissão, decidiu questionar a opção do título: "Qual a razão pela qual o título do artigo fala em 'milícias populares' e não em 'indivíduos armados', ou 'desordeiros' ou 'bando de rufias'?"

O provedor solicitou uma explicação aos responsáveis editoriais, que responderam pela pena de David Mandim, editor adjunto da Segurança: "A designação milícias populares foi utilizada por estarmos perante pessoas que actuam em grupo, armado (no caso com tacos de basebol, sacholas, picaretas, e outros objectos) e que actua à margem da lei de forma organizada, tendo inclusive uma autodenominação de 'justiceiros de Constantim'. As vítimas relatam que já não foi a primeira vez que ocorreram agressões no mesmo local. A zona, conhecida como Pioledo, é muito frequentada por estudantes e está também conotada com o consumo e tráfico de drogas - aparente motivo para as acções do grupo agressor. Todos estes elementos conjugados parecem indicar a existência de uma milícia (seja qual for a sua dimensão) e não uma mera 'brincadeira' de Carnaval. Podia ser outra a expressão usada, de facto, mas foi essa a escolha no dia."

 A origem histórica do termo "milícia" quase que se confunde com a fundação da nacionalidade. Recorrendo, por exemplo, à Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (haverá outras fontes, certamente mais especializadas), lê-se que "por milícia entende--se a força armada que não é permanente ou regular; nos primeiros tempos da monarquia, o exército ou hoste compunha-se de gente de pé e de cavalo, que forneciam os fidalgos acontiados, isto é, que recebiam uma certa contia para servirem com certo número de lanças, e pelas milícias concelhias, na maior parte a pé". Quem estiver interessado, pode consultar a fonte referida e acompanhar a evolução histórica das milícias, até aos nossos tempos, em que oficiais e sargentos que não pertenciam ao quadro permanente tomavam o nome de "milicianos".

 Generalizou-se, entretanto, a utilização da expressão "milícias populares" quando se constatava estar perante um grupo de pessoas que se organizavam, à margem da lei, para prevenir ou combater situações de criminalidade em que o Estado de direito falhava no cumprimento de uma das suas  missões vitais. Ou seja, da conjuntura em causa inferia-se alguma "tolerância" face a acções passíveis de serem remetidas para o terreno da "legítima defesa", embora num quadro de marginalidade face à ordem democrática estabelecida.

 Compreende-se, portanto, que "milícias populares" não sejam, forçosamente, associadas à criminalidade e, nessa medida de rigor, encontra razão de ser a questão formulada por Diana Andringa. No entanto, no caso aqui em apreço, a leitura da notícia não deixa dúvidas sobre o julgamento, legítimo, que o DN faz dos factos, remetendo-os para o domínio de uma actuação criminosa.
Em conclusão, é um episódio de desfasamento entre título e texto, com o primeiro a sugerir uma interpretação que não se coaduna com o segundo.

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