Milhares de muçulmanos e 'sikhs' improvisam espaços de culto em Odemira
É a última sexta-feira do Ramadão, o dia da semana mais importante no Islão. Homens, maioritariamente naturais do Bangladesh, caminham em direção ao centro de Vila Nova de Milfontes. Alguns usam o panjabi (túnica comprida), há quem carregue um tapete, muitos calçam chinelos e levam na cabeça ou no bolso um kufi (pequeno chapéu). Apressam-se para a oração principal das cinco diárias cumpridas pelos muçulmanos, neste dia às 13h30. Dirigem-se para uma mesquita improvisada, onde já foi o restaurante A Nossa Adega. Não chega para todos os que querem entrar. Haverá desdobramento uma hora depois.
Um antigo restaurante pode ser o local ideal para a prática religiosa, tem um espaço onde fazer a ablução: lavar a cara e a cabeça, as mãos e os braços, os pés. É fundamental para a salá (as cinco orações diárias). Anteriormente, concentravam-se no rés-do-chão do centro comercial de Vila Nova de Milfontes, junto às casas de banho.
Oram os naturais dos países onde o islamismo é a religião maioritária, como Bangladesh e Paquistão, e que têm sido fonte de mão de obra para Portugal. Chegam aos milhares a Odemira, que está a atingir o pico da apanha na agricultura, especialmente dos frutos vermelhos, mas vêm também da Guiné-Conacri, da Guiné-Bissau e do Senegal, entre outras paragens.
Destaquedestaque10 927 imigrantes com residência legal
No concelho contam-se ainda cidadãos da Índia e do Nepal, onde a religião maioritária é o hinduísmo, e da Tailândia, uma comunidade discreta que pratica o budismo entre portas. Os indianos que para ali se deslocaram são sobretudo sikhs, dissidentes do hinduísmo, e encontram-se todos os domingos num salão em Odemira.
A dúvida que nos levou a Odemira - os imigrantes não-católicos têm local para a prática da religião? - é facilmente desfeita com uma conversa com essas comunidades. As autoridades da região e os organismos cujo papel principal é a integração social dizem ao DN desconhecer se existem esses locais, apesar de os representantes dos sikhs e do Islão referirem ter pedido à autarquia a cedência de instalações para a prática religiosa e cultural.
Aqueles cidadãos correspondem aos fluxos migratórios mais recentes. Juntam-se-lhes os migrantes da Europa de Leste - Bulgária e Ucrânia, que nos últimos meses têm subido com o fluxo de refugiados -, maioritariamente ortodoxos. Aos que se reveem nessa fé, que resultou de uma cisão da Igreja Católica, é-lhes cedida a igreja de Almograve para as festas especiais, como foi o caso da Páscoa ortodoxa, celebrada uma semana depois da católica.
Residem ainda ali brasileiros, muitos protestantes, principalmente evangélicos. Há credos de todo o tipo há muito sediados no país e que têm instalações na zona. Além de muitos outros estrangeiros que adquiriram a nacionalidade portuguesa, mantendo a sua prática religiosa.
"A questão da religião não é contemplada diretamente a não ser pela liberdade de cada cidadão em manter a sua cultura e tradições, onde se inclui a liberdade religiosa", explicou ao DN Isabel Palma Raposo, vereadora da Câmara Municipal de Odemira (CMO) responsável pela área social. A prioridade é dar resposta a maiores problemas detetados nestas comunidades, incluindo o "alojamento e a barreira linguística, que são dificuldades para o acesso aos direitos e deveres enquanto cidadãos".
Os bengalis parecem ser a etnia maioritária em Milfontes, embora o número oficial, que respeitam as autorizações de residência atribuídas até dezembro, não o confirmem. Segundo o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), há 10.927 imigrantes regularizados no concelho de Odemira. E outros milhares, reconhecem, à espera da residência, na sequência de "manifestação de interesse", num processo de legalização que chega a demorar mais de dois anos.
Estão a começar a chamar para a primeira entrevista quem se inscreveu em 2021. Entre os documentos exigidos destaca-se o contrato de trabalho e o atestado de residência passado pela junta de freguesia, e, tendo em conta o fluxo dos últimos dois anos, a autarquia diz que os principais países de onde vêm são o Nepal, a Índia e o Bangladesh.
Só nos primeiros quatro meses do ano o presidente da Junta de Vila Nova de Milfontes, Francisco Lampreia, passou 960 atestados. A média são três mil por ano, mas "eles circulam muito", refere, apontando "a sobrelotação das casas e a falta de habitação" como as suas maiores preocupações.
"A falta de habitação acaba por gerar conflitos com a vizinhança. Como são muitos, se faz calor trazem o colchão para a rua, há roupa por todo o lado, são diferenças culturais, é muito complicado."
Francisco Lampreia culpa as empresas que fazem das migrações negócio e levam cinco mil euros a um estrangeiro para conseguir a residência legal - processo que é mais fácil em Portugal do que noutros países da UE. Quanto às festas e festivais religiosos, a junta vai cedendo o ringue da praça sempre que hindus e sikhs lho pedem.
Os seguidores do Islão têm à disposição o campo de jogos do Clube Desportivo Praia Milfontes. Ainda na segunda-feira lá estiveram, desde as 7h30, para celebrar o fim do Ramadão (mês em que jejuam desde que o sol nasce até que se põe), cerca de 500 pessoas. "Há três ou quatro anos que cedemos o espaço gratuitamente; durante a pandemia parou, depois voltaram a pedir e é um direito que têm. A prática religiosa é uma forma de se sentirem integrados na população", diz Renato Vilhena, vice-presidente do clube.
Entrega as chaves a Schuman Suhemel, 38 anos, comerciante natural do Bangladesh e que vive há sete na localidade, onde tem um supermercado e uma empresa prestadora de serviços. Alugou o espaço que dá lugar a uma mesquita improvisada. É o secretário-geral da Bangladesh Community of Vila Nova de Milfontes, que salienta ser a maior comunidade islamita do concelho. "Somos muçulmanos, temos de rezar cinco vezes por dia, temos duas grandes festas anuais, precisamos de um espaço para as orações, para a nossa cultura, para apoiar outros imigrantes. Estamos a falar com as autoridades para conseguir esse espaço. Seria bom se fosse gratuito, mas também podemos pagar."
O presidente da associação é Yeakub Khan, comerciante. "É essencial ter um espaço para a prática religiosa - começámos por ir ao centro comercial, agora este antigo restaurante já é pequeno. Muitas pessoas acabam por orar sós e é importante estarmos juntos." Esperam ter sede para registar a associação.
Destaquedestaque3000 atestados de residência por ano em Milfontes
O imã que dirige as celebrações é Zunayedor Khan, 35 anos, há seis no país. É para ele que todos se viram para orar, em direção a Meca. Quando não podem ir à "mesquita", improvisam a oração em casa ou no trabalho, como exemplifica Abdul Ahad, 39 anos, há dois no país. "Rezo no escritório ou em casa, ponho o tapete, viro-me para Meca, cinco vezes por dia, cinco minutinhos. À sexta-feira juntamo-nos."
A mesquita mais próxima é a de Beja, que fica a 107 km da costa alentejana. E que, depois de ter mudado de sala, também já se revela pequena. "A mesquita existe desde 2009 e foi fundada pelos imigrantes africanos; agora os que aqui estão são maioritariamente da Ásia. Alugámos uma sala maior e já não chega. Estamos a recolher toda a documentação para ter um espaço com condições", reclama o imã Alfa Amadou, 33 anos. É da Guiné-Conacri e trabalha na vinicultura.
Segundo a Mesquita Central de Lisboa, existem 55 espaços oficiais destinados à prática do islamismo. Serão cerca de 55 mil muçulmanos, o primeiro grande fluxo vindo dos países de expressão portuguesa, sobretudo Moçambique e Guiné-Bissau. Muitos mais vieram nos últimos anos, mas não há certeza de quantos serão na totalidade.
Food Himlaya Restaurant, em São Teotónio, é o restaurante que Krishna Sen, 36 anos, explora há cinco anos. Era o Caseiro, agora é um dos muitos que os imigrantes de origem asiática estão a abrir na freguesia, por oposição a Vila Nova, onde se dedicam mais ao comércio, sobretudo de roupa e de telefones. Em ambas as localidades do concelho de Odemira abrem também mercearias e empresas prestadoras de serviços, nomeadamente para colocar trabalhadores nas unidades agrícolas.
Krishna é de Pokhara, chegou há sete anos e trabalhou dois na agricultura. Vive em São Teotónio com a mulher e os dois filhos, que já ali nasceram, de três anos e nove meses. O irmão Surendra Thaypa, 22 anos, trabalha no restaurante. "No Nepal ia ao templo, mas como aqui não há, rezamos em casa todos os dias. Temos pequenos templos, a foto dos nossos deuses - o principal é Dashain - e nos festivais juntamo-nos no centro da praça [Largo de Gomes Freire]", conta. O mais importante é o Festival Diwali, feriado religioso que este ano se celebra a 24 de outubro.
O presidente da Junta de Freguesia de São Teotónio, Dário Guerreiro, diz que são muito pontuais os pedidos dos hindus para fazerem os seus festivais em homenagem ao nascimento dos gurus. No mesmo local encontram-se também muitos indianos, como Amit Rana, 32 anos, proprietário da Lucky Doner-Kebab Pizzaria, há três na freguesia. "Na Índia ia todos os dias ia ao templo; aqui o que temos mais perto é em Albufeira - já lá fui, mas não dá para ir sempre, por isso rezo em casa e ponho no telemóvel a imagem de Shiva [o deus supremo].
O templo de Albufeira é dos sikhs e fica a 82 km, ainda assim mais perto do que Beja. Há mais dois desta religião no país: em Lisboa (Odivelas e junto ao aeroporto) e dois dos hindus, em Telheiras, Lisboa, e no Porto.
A família Harpreet tem um minimercado em Almograve, mesmo no largo da igreja. O pai, Harpreet Singh, 38 anos, chegou há nove e já conseguiu trazer a mulher, Aman Deep Kaur, 36 anos, e os filhos, agora com 14 e 17 anos. São naturais da Índia, Punjab, da terra do guru Nana, que criou a religião.
Harpreet explica que o que os distingue dos hindus são cinco rituais: a barba (kesh), a pulseira (kara), o turbante, o pente (kangha)e o punhal (kirpan). Nem sempre os usam em Portugal - muito menos a arma. Refere a importância do trabalho e a partilha com os outros: todos os dias coloca 10 % do que ganhou num frasco para celebrações e ações solidárias.
"Reunimo-nos todos os domingos numa grande sala em Odemira, das 6h00 às 15h00. Rezamos aos nossos deuses [são 10 os principais], em especial ao guru Doware, e depois é o momento de confraternização. Todos comemos e ninguém paga nada. É para isso que serve o dinheiro que pomos de parte, e para ajudar quem precisa." Agora estão a angariar fundos para enviar para a Índia o corpo de uma mulher que morreu no concelho e cuja família não tem posses.
A sala fica bem no centro de Odemira, que já foi um minimercado e está hoje alugada por Hardeep Singh, proprietário do Neet"s Doner Kebab & Restaurant. Tem outro restaurante em São Teotónio - é uma estrutura familiar, onde também trabalha o irmão, Gurpreet Singts Singh, de 28 anos, que vai fazer dois a viver no Alentejo. "Fechou o supermercado, depois foi a minha casa e agora esse espaço é utilizado para a nossa religião. Rezamos e depois fazemos a nossa comida, é dos sikhs mas são bem-vindas todas as religiões. Habitualmente, juntamo-nos 80 a 100, mas já chegámos a estar 150, sobretudo nos dias especiais", conta Gurpreet.
O dia mais especial é o vaisakhi ou baisakhi, o festival que celebra a Khalsa, inaugurada por Gorind Singh, o décimo guru. Marca o início de um novo ano e foi celebrado a 14 de abril, uma segunda-feira - pelo que a festa passou para o domingo seguinte.
Sewak Singh, 38 anos, preside à Associação da Comunidade Sikh de Odemira. "Apresentámos a nossa associação e projeto à câmara, porque precisamos de um espaço não só para podermos praticar a nossa religião, mas para funcionar como escola e prestação de apoio e cuidados de saúde à comunidade. Há um templo em Albufeira, onde já fui algumas vezes, mas eu tenho transporte - há quem não tenha. Precisamos de um sítio grande para rezar e não o encontramos a nível particular, por isso precisamos da colaboração da câmara", diz. E frisa: "Não queremos nada grátis, podemos pagar." Tem 38 anos e trocou o Punjab por Lisboa em 2007, trabalhou em lojas e está desde 2016 em São Teotónio, onde é dono do Singh Minimercado e de uma prestadora de serviços.
A vereadora Isabel Raposo lembra que não é da "competência da autarquia disponibilizar estes espaços". Mas acrescenta: "Temos desenvolvido projetos culturais para valorização e sensibilização das várias culturas e identidades no concelho, nomeadamente através do Plano Municipal de Integração de Migrantes", que visa "promover o acolhimento e a integração de cidadãos nacionais de países terceiros a nível local, assegurando estratégias que garantam a crescente autonomização e a igualdade de oportunidades destes cidadãos e a harmonia e a paz social". Os imigrantes com quem o DN falou consideram fundamental para essa inclusão um espaço de culto próprio.
No Instituto Nossa Senhora de Fátima de Vila Nova de Milfontes há 600 alunos, entre estes, 105 têm origem estrangeira, representam 20 nacionalidades, desde o pré-escolar ao 12.º ano. Através de um contrato com o Estado, todos têm acesso ao ensino até ao secundário na vila. Muitos vêm da Europa de Leste, de onde agora chegam refugiadas todos os dias: eram já 54 estudantes há uma semana. O segundo grupo é o de brasileiros: 14.
"No concelho, a comunidade hindu não tem muita expressão em termos de visibilidade. Os do Bangladesh e do Paquistão são muçulmanos e não há prática em conjunto, pelo menos conhecida. Mas os sikhs representam uma comunidade muito grande, cerca de 3500. Há dois, três anos, houve um encontro das comunidades e eles disseram que a segunda comunidade sikh de Portugal estaria em Odemira", explica o padre Manuel Pato, vice-presidente do Instituto e diretor da escola. É o páraco local e é ele quem disponibiliza a igreja de Almograve aos ortodoxos para as celebrações anuais.
"A comunidade ortodoxa é muito grande e já os acompanho há 13 anos", conta.
Em relação às crianças e jovens que ensinam, defende que a diversidade religiosa e cultural é uma riqueza. "Há respeito mútuo pela pluralidade", explica. Dá como exemplo um guia que os estudantes fizeram sobre os cidadãos que têm vindo a acolher, em especial do Nepal, Índia e Bangladesh, com informação geográfica, cultural, gastronómica e religiosa também de Portugal. Foi publicado em 2020, sob o nome Namaste (saudação) e arranca com uma citação do Papa Francisco: "Somos todos imigrantes. Ninguém tem morada fixa nesta terra."
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