Milei legisla por decreto para "desmontar a máquina de impedir"

Novo presidente declara emergência pública e avança com 366 medidas de desregulação estatal, mas enfrenta protestos nas ruas e incerta ratificação parlamentar.
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A sigla DNU esconde uma revolução em curso na Argentina. Ao fim de oito dias a contar da publicação, na quarta-feira, do decreto de necessidade e urgência (DNU), o país sul-americano entra em emergência pública em matéria económica, financeira, fiscal, tarifária, administrativa, de segurança social, sanitária e social até 31 de dezembro de 2025. Dessa forma, o presidente Javier Milei pretende continuar a legislar por decreto, uma vez que não tem maioria nas duas câmaras do Congresso. Mas é uma jogada de alto risco porque precisamente os deputados e senadores em maioria podem bloquear a produção legislativa do governo.

Para Milei, que prometeu medidas de choque para inverter décadas de estagnação e crise, o estado da economia justifica a urgência e a fórmula utilizada. "Entre leis, regulamentos e demais normativas que dificultam o funcionamento da economia e uma sociedade livre, detetámos 380 mil regulações. Queremos desmontar esta máquina de impedir", disse aos microfones da rádio Rivadavia depois de na quarta-feira ter anunciado aos argentinos as primeiras 366 medidas, das quais destacou 30.

Citaçãocitacao"Estamos a fazer o máximo esforço para diminuir os efeitos trágicos do que pode ser a pior crise da nossa história." Javier Milei

Desregular e liberalizar são as palavras de ordem e entre as principais medidas do economista ultraliberal destacam-se a revogação da lei que impedia a privatização de empresas públicas, abrindo caminho para a reprivatização da petrolífera YPF; a possibilidade de fazer negócios em dólares; o fim dos aumentos controlados nos contratos de arrendamentos; o fim dos preços tabelados nos seguros de saúde privados e regras mais flexíveis para os seguros dos sindicalizados; e permitir que os clubes desportivos possam transformar-se em sociedades anónimas desportivas (SAD).

Citaçãocitacao"Seis em cada dez crianças dos zero aos 14 anos são pobres. Esta é a tragédia que vivemos, produto de um modelo político e económico que atenta contra a liberdade." Javier Milei

Mas há mais: apesar de ter reconhecido no discurso que fez à nação de que os níveis de desemprego são baixos graças à percentagem de trabalho informal e de baixos salários, Milei decidiu também intervir no código do trabalho, ao retirar direitos aos trabalhadores. As jornadas laborais de 12 horas passam a ser permitidas; o período experimental passa para oito meses; o cálculo das indemnizações por despedimento é refeito para alívio das entidades patronais, e a partir de agora o direito à greve sofre limitações. Os serviços considerados essenciais são obrigados a assegurar 50% da prestação do trabalho regular durante uma greve e os serviços considerados de importância transcendental têm de manter 75% da força laboral.

Mal Milei anunciou a DNU - ladeado de ministros e do seu assessor Federico Sturzenneger, autor do decreto - milhares de bonaerenses saíram às ruas em protesto, reeditando a tradição do cacerolazo, o protesto ruidoso com panelas e outros utensílios metálicos. Alberto Fernández, presidente que cessou funções há menos de duas semanas, insurgiu-se contra o "claro abuso de poder" do sucessor.

Citaçãocitacao"O nosso país está a assistir a um ato de extrema gravidade institucional nunca antes visto." Alberto Fernández

Juristas de vários quadrantes juntaram a sua indignação. Milei reconheceu que algumas medidas são "antipáticas", mas que a classe média vai beneficiar e reagiu com ironia aos protestos: "É possível que algumas pessoas sofram do síndroma de Estocolmo. Estão abraçadas e apaixonadas pelo modelo que as empobrece. Há pessoas que olham com nostalgia, amor e afeto para o comunismo." Além disso, prometeu para breve mais DNU e um "projeto de lei para modificação do Estado".

Citaçãocitacao"O nosso país está a assistir a um ato de extrema gravidade institucional nunca antes visto." Axel Kicillof, governador de Buenos Aires

Cabe agora aos deputados e senadores ratificar ou invalidar a DNU. Para que o decreto seja nulo as duas câmaras têm de rejeitá-lo, o que, tendo em conta a relação de forças, não seria surpreendente. É nestes, que Milei chama de "casta" e culpa pelos males do país, onde reside a pressão: "Aqueles que são contra o progresso e que são casta ficarão em evidência para os argentinos."

cesar.avo@dn.pt

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