Milan Kundera. O escritor que carregou o fardo da Europa

Nome indispensável do cânone literário do século XX, Milan Kundera morreu esta quarta-feira em Paris, onde se exilara depois de abandonar a então Checoslováquia. Foi também um ativista pela liberdade e um humanista.
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O mundo muda pouco (apesar de, a nossos olhos sem visão de conjunto, parecer frequentemente o contrário) ou é a vida humana, que mesmo nos casos de maior longevidade como a do escritor Milan Kundera, é demasiado breve? Quis o momento histórico que, há menos de um mês, a Dom Quixote (editora portuguesa do escritor) lançasse um pequeno volume intitulado Um Ocidente Sequestrado, em que se reúnem dois textos de reflexão política escritos antes da queda do Muro de Berlim. Num deles, relativo à Primavera de Budapeste (que precedeu, em 12 anos, a de Praga), Kundera escreve: "Em 1956, no mês de setembro, o diretor da Agência de Imprensa da Hungria, alguns minutos antes de o seu gabinete ter sido arrasado pela artilharia, enviou por telex para o mundo inteiro uma mensagem desesperada sobre a ofensiva russa, lançada nessa manhã contra Budapeste. O despacho termina com estas palavras: "Morremos pela Hungria e pela Europa." (...) O diretor da agência queria dizer que a Europa era atacada na própria Hungria. Ele estava pronto a morrer para que a Hungria se mantivesse Hungria e se mantivesse Europa."

Mais de meio século e muitas voltas da História depois, Kundera, que morreu, esta quarta-feira aos 94 anos, viveu o suficiente para ver os tanques russos na Ucrânia e o antagonismo entre Oeste e Leste tenso o bastante para que voltemos a temer um conflito nuclear. Surpreendente? Talvez mais para nós do que para ele, que na sua obra mais celebrada (e adaptada ao Cinema por Philip Kaufman) A Insustentável Leveza do Ser escreve: "Se cada segundo de nossa vida se deve repetir um número infinito de vezes, estamos pregados na eternidade como Cristo na cruz. Essa ideia é atroz. No mundo do eterno retorno, cada gesto carrega o peso de uma responsabilidade insustentável. É isso que levava Nietzsche a dizer que a ideia do eterno retorno é o mais pesado dos fardos."

Nascido a 1 de Abril de 1929, em Brun, na então Checoslováquia (atual Chéquia), Milan Kundera fica para a História como o exemplo do escritor do século XX, tão comprometido política e socialmente, como com o seu trabalho, o que talvez não se estranhe se pensarmos na Europa Central da sua infância e adolescência - basta pensar que Milan tinha nove anos quando os nazis invadiram o seu país, com o falso pretexto de salvaguardar a situação das populações que falavam alemão.

Por essa idade, o futuro escritor estudava música com o pai, o importante pianista e musicólogo, Ludvik Kundera, mas nos anos que se seguiram foi-se apercebendo de que a sua vida passava mais pela escrita. A partir do pós-guerra dedicou-se a ela, ao mesmo tempo que se inscrevia no Partido Comunista Checo (em 1948), de que seria sucessivamente expulso (em 1950) e readmitido (em 1956), tendo permanecido militante até 1970, quando voltou a ser irradiado. Desta vez para sempre.

Esse passado regressaria várias vezes para o assombrar. Em 2008, um artigo publicado numa revista checa acusava-o de ter colaborado com a polícia política do seu país, em 1950, para denunciar alguém que, por causa dessa informação, teria sido condenado a 14 anos de trabalhos forçados numa mina de urânio. O escritor negou terminantemente tais acusações e a verdade é que, na chamada Primavera de Praga de 1968, foi um ativista tão destacado que, após o esmagar da revolta pelo Exército Soviético, os seus livros foram proibidos e o seu nome irradiado da lista de militantes do PC.

De resto, como se pode ler no referido livro Um Ocidente Sequestrado, já em 1967, Kundera participara no Congresso dos Escritores da Checoslováquia e exortara os seus pares à independência de espírito.

Nesse mesmo ano, estreou-se com a publicação da novela, A Brincadeira, centrada nas vidas e destino de vários cidadãos checos durante os anos do estalinismo, com um enfoque cómico e irónico. Traduzida para várias línguas, a obra alcançou grande êxito internacional. Com a sua segunda novela, A Vida não é Aqui, ganhou, em França, o Prémio Médicis, para obras estrangeiras, de 1973. Dois anos mais tarde, em 1975, as autoridades checoslovacas autorizaram-no a emigrar, com a mulher, Vera Hrabankova, para aceitar o convite de se tornar docente na Universidade de Rennes.

Não foi o final de uma relação tensa com o governo do seu país, membro do Pacto de Varsóvia, na órbita política de Moscovo. Em 1979, Milan Kundera viu-se privado da nacionalidade por ordem governamental, momento em que optou pela nacionalidade francesa e por fixar residência em Paris, onde morreu. Em liberdade, o escritor pôde desenvolver uma obra assinalável em que se destacam títulos que são parte do cânone literário do século XX: O Livro do Riso e do Esquecimento (1979), A Insustentável Leveza do Ser, A Valsa do Adeus, A Arte do Romance ou O Livro dos Amores Risíveis. Os seus últimos livros, A Lentidão, A identidade, A ignorância e A Festa da Insignificância, foram escritos em francês, registando-se um hiato de 14 anos entre a sua penúltima obra e a derradeira, a referida A Festa da insignificância.

Mas o reconhecimento internacional do seu trabalho e a liberdade para o produzir sem interferências policiais não lhe bastavam. Em 1982, em declarações ao jornal espanhol El País, mostrava-se desagradado com leituras exclusivamente políticas da sua obra: "Não me sinto cómodo no papel do dissidente. Não gosto de reduzir a literatura e a arte a uma leitura política. A palavra dissidente significa atribuir a alguém uma literatura de tese, e se há algo que detesto é precisamente a literatura de tese. O que me interessa é o valor estético. Para mim, a literatura pró-comunista ou a anticomunista é, nesse sentido, a mesma. Por isso não gosto de ver-me como um dissidente."

Kundera conquistou, em 2001, o Grande Prémio da Academia Francesa pelo conjunto da sua obra, o Prémio Nacional de Literatura da República Checa em 2007, entre muitas outras distinções académicas e literárias. Neste momento de despedida, milhares de obituários repetem que a Kundera só faltou o Prémio Nobel (ano após ano, foi um crónico candidato), mas, quando lemos algumas das suas páginas mais inspiradas, concluímos que talvez tenha sido o contrário: Foi ao Nobel que faltou Kundera.

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