Miguel Oliveira da Silva: "Adoro as utopias, mas quando põem em causa a saúde são perigosas"
Quem Está contra a Medicina? é o título do novo livro de Miguel Oliveira da Silva, obstetra no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, e professor de Ética Médica na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Explora temas como o parto em casa, o recurso a terapias convencionais, os movimentos antivacinação, o internamento psiquiátrico involuntário e o parecer médico na mudança de identidade de género.
Defende uma relação aberta entre paciente e médico, em que sejam abordadas as questões anteriores, e que seja divulgada mais informação científica que ajude os cidadãos a fazer escolhas informadas. "Não é fazer o que o médico diz, até podem fazer o oposto, mas falar com o médico", afirma o ex-presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.
O seu mais recente livro pode gerar controvérsia logo no título. Quem está afinal contra a medicina?
São sobretudo as pessoas que não acreditam na eficácia dos cuidados de saúde que nós sabemos que são seguros, como fazer o parto no hospital, vacinar os filhos, certas doenças psiquiátricas que têm de ser tratadas no hospital e que defendem certas terapêuticas não convencionais, que nós - médicos clássicos - sabemos que não são eficazes e que até parecem perigosas. E o último exemplo, mais complicado, são as pessoas que querem mudar de sexo e de género sem falar com o médico, o que já não é proibido a partir dos 18 anos.
Isso significa que essas pessoas estão contra a medicina?
Entendem que não precisam dos conhecimentos médicos, que podem viver bem sem isso, e se calhar têm esse direito. Não defendo que o parto no hospital deva ser obrigatório. Há certos países no leste da Europa em que é obrigatório. O mesmo com as vacinas, na Alemanha não vacinar os filhos dá direito a uma multa de 2500 euros.
E defende a obrigatoriedade das vacinas para as crianças em Portugal?
Pois, são coisas diferentes: ser obrigatório é uma coisa, multar quem não o faz é outra. Deveríamos ir para uma fase intermediária, que os alemães também tiveram, que é obrigar os pais que não vacinam os filhos a ouvir ou a ler uma explicação sobre os riscos. Ouvem, assinam que ouviram e tomam a sua decisão. Os alemães começaram assim neste ano, em março, mas passados quatro meses já estavam a multar. Tenho dúvidas de que estas medidas punitivas - que não sei se chegarão cá ou não - sejam eficazes. E tenho dúvidas de que as pessoas que tomam estas atitudes o façam por motivos racionais, porque há pessoas que vivem no mundo da irracionalidade, do mistério, com um estilo de vida alternativo; muitas vezes são pessoas que contestam a autoridade. Há estudos que indicam que as pessoas que recusam vacinas e partos no hospital são as mesmas que não votam. Há um grande ceticismo em relação às instituições do sistema político e de saúde.
Mas não serão todos assim.
Esse é o problema, pois não há estudos em Portugal sobre estas pessoas. Eu precisava de ter um estudo muito bem feito sobre quem são as grávidas que não querem ter o parto no hospital e que não tiveram, porque há muitas que não querem ter, mas acabam por ter a contragosto. Entretanto foram convencidas pelas amigas, pelos médicos, pelas enfermeiras. Quem são essas mulheres? De que meio social? O que fazem na vida? Qual é a posição delas sobre as instituições do sistema? A mesma coisa em relação aos casais que não querem vacinar os filhos. Só temos impressões, mas são dados muito empíricos e dispersos que não permitem estabelecer um perfil organizado e sólido dessas pessoas. Não estou a dizer que são as mesmas em tudo. Não estou a dizer que quem faz terapêuticas convencionais não vacina os filhos e tem o parto em casa, mas pode haver um perfil próximo. Em relação às terapêuticas convencionais, o que vejo é que são pessoas que estão muito próximas de nós, familiares, amigos que não nos dizem por vergonha.
Mas a nova Lei de Bases da Saúde reconhece as terapêuticas não convencionais.
Sim, a base 26. Vamos ver como é que isto vai ser regulamentado.
Porquê?
Porque tenho as maiores dúvidas e perplexidades. Como é que o Estado vai regulamentar as terapêuticas não convencionais? Porque dentro do chapéu destas terapêuticas há coisas muito diferentes, umas que nós, médicos convencionais, aceitamos, como a osteopatia e a acupuntura em certas indicações, e outras que não. Começamos a falar em correntes elétricas que nos entram na cabeça e saem pelos pés, alguns tipos de terapias chinesas, há quem diga que é perigoso, que é um embuste, mas está na Lei de Bases da Saúde.
Considera que as terapêuticas convencionais não deveriam ter espaço na lei de bases?
Tenho de confessar a minha ignorância, com toda a franqueza: não sei o que são as terapêuticas chinesas. Só sei que em fevereiro de 2018 é instituída a licença para estas. Na China, existe a medicina tradicional há muitos séculos, é verdade, mas não existe medicina para tratar cancros.
Se não conhece, porque está reticente quanto à aprovação?
Tenho uma dúvida metódica, sou cético. Na faculdade não ensinamos medicina tradicional chinesa, o que ensinamos é que estas terapêuticas não passam no crivo cientifico da medicina atual, não fazem ensaios clínicos.
É conservador?
Não, não sou. Temos de ter uma mente aberta e tem de haver nas universidades clássicas uma cadeira que faça uma análise cientifica dos pontos fortes e dos pontos fracos das terapêuticas não convencionais. Até porque, como disse, estas pessoas [que recorreram às terapias convencionais] estão perto de nós, mas não sabemos bem quem são, porque um médico não pergunta a um doente se faz terapias não convencionais ou se está a pensar ter um parto em casa. No Reino Unido perguntam.
Era bom que os médicos portugueses perguntassem também?
Sim, para se dar espaço ao diálogo, para se perceber quem são as pessoas. A pergunta não é um convite.
Em todas estas questões que aborda no livro há pelo menos um ponto comum: as pessoas querem assumir as decisões sobre a sua vida.Onde é que começam os direitos dos cidadãos a terem a sua liberdade de escolha e o dever do Estado de intervir?
O Estado obriga a usar cinto de segurança [no carro] ou um capacete a quem anda de moto. Multa quem usa o telemóvel enquanto está a conduzir. Portanto, o Estado interfere na nossa liberdade individual, agora há alguma analogia entre isto e obrigar uma mulher a ter um parto no hospital, obrigar um casal a vacinar os filhos ou obrigar uma pessoa que quer mudar de género a consultar um médico antes? Não podemos ter a ilusão de que o Estado não tem direitos na gestão da nossa saúde. Nos países do Leste, as mulheres não podem fazer o parto em casa e os pais têm de vacinar os filhos. Não defendo isso, mas dá que pensar.
E até onde deve ir a intromissão do Estado, em Portugal?
Creio que depende dos casos, à exceção da mudança de identidade, em que deveria ser obrigatório consultar um médico antes. Não é fazer o que o médico diz, até podem fazer o oposto do que o médico diz, mas falar com o médico antes de mudar de género só faz bem. Mesmo depois dos 18 anos pode haver dúvidas, arrependimentos.
O Presidente da República vetou a hipótese do direito à autodeterminação de género a partir dos 16 anos sem relatório médico. Só a partir dos 18 anos não é necessário consultar um médico.
Costumo dizer aos meus alunos que 16 anos não são 16 anos. Duas pessoas são muito diferentes. Uma pode ser madura e outra não. E aos 18 anos também, mas tem de haver uma idade na lei. Vamos admitir que aos 16 anos uma pessoa já tem estabilizada a sua identidade individual e que sabe perfeitamente o que quer, falar com o médico não tem de a fazer mudar de ideias. Penso que não é um excesso de paternalismo meu, a minha preocupação é em reforçar a informação.
A partir dos 16 anos já é possível interromper voluntariamente a gravidez. Há uma diferença na maturidade de um caso para o outro?
Vamos imaginar a mesma pessoa com 16 anos: fez um aborto há um mês, pode fazê-lo. Mas um mês depois quer mudar de género e a lei já não o permite. O que quer dizer que a lei dá à mesma pessoa com 16 anos um direito e não dá outro. Ainda posso complicar mais: no ano passado houve um partido que quis antecipar a idade de voto para os 16 anos e a proposta foi chumbada. O mesmo Parlamento não permite votar aos 16 anos, mas permite interromper a gravidez com a mesma idade. Há alguma contradição nisto tudo ou são exigências de diferentes patamares? É preciso ver caso a caso.
Já acompanhou algum caso de mudança de género?
Já, mas não tenho dados sobre possíveis arrependimentos. É preciso acompanhar as pessoas que estão a mudar de género agora e ver como estão daqui a cinco e a dez anos para saber se sentiram bem logo a seguir a mudar de género. É indispensável ter estudos longitudinais.
Outro dos temas de que fala no livro é o tratamento psiquiátrico involuntário.
Hoje, o objetivo é tentar acabar com o tratamento dos doentes psiquiátricos no hospital, se o doente não quiser. O que é muito bonito no plano teórico, mas para já há o drama das famílias que têm um doente em casa que parte cadeiras, agride, ameaça que bate. E depois é preciso que haja recursos humanos (médicos, enfermeiros, assistentes sociais) para ir a casa do doente. Isso implica recursos financeiros que não há. Adoro as utopias, mas quando põem em causa a saúde do próprio ou de terceiros são perigosas. Não há país nenhum em que haja recursos financeiros suficientes para conseguir realizar essa utopia, que é desejável e que tem na sua base os abusos feitos em hospitais, em asilos... fizeram-se coisas brutais aos doentes psiquiátricos e a reação é passar de um extremo para outro.
Trabalha no Serviço Nacional de Saúde desde o início. O que mudou nos últimos 40 anos?
Acabei o curso em 1976 e comecei a trabalhar em 1977. Portanto, sim. Há quarenta anos, as pessoas que tinham o parto em casa eram miseráveis e eram 27%. Hoje, quem quer ter o filho em casa não é miserável, são pessoas com diferenciação intelectual e cultural e são 1,2%. Há 40 anos, não havia médicos de família e cuidados de saúde para toda a gente, a taxa de vacinação era muito menor, o planeamento familiar estava a dar os primeiros passos, o aborto era clandestino e morriam muitas mulheres, as pessoas não tinha acesso a métodos contracetivos, só para mencionar alguns exemplos na minha área, a obstetrícia. Houve um avanço brutal. As prioridades do Serviço Nacional de Saúde são outras e temos de nos adaptar a elas.