Miguel Frasquilho, um setubalense de gema que gostava de ter sido futebolista
Estamos numa prancha de banda desenhada. Sentados à mesa entre os desenhos a preto e branco do 2D, não custa pensarmo-nos figuras de uma aventura em processo de criação, ainda no estirador do artista, a única mancha de cor a destacar o personagem principal da história, Miguel Frasquilho, impecavelmente pintado a beringela e laranja, sorriso de herói e brilho nos olhos a revelar o entusiasmo da nova missão que acaba de abraçar. Não é numa das suas histórias de BD favoritas - os álbuns de Tintim, Lucky Luke e Astérix que já lê exclusivamente no iPad, como o resto da literatura com que ocupa parte dos tempos livres -, mas é uma aventura pelo mundo das tecnologias e da digitalização. Em janeiro, oficializou a sua relação com a CI&T, que escolheu Portugal para se lançar ao Sul da Europa e Frasquilho para liderar esse processo, e já conta com uma equipa de 50 pessoas a trabalhar, um par de grandes clientes que anunciará em breve e planos de expansão bem traçados.
"O meu objetivo, que trago aqui na parte de trás da cabeça, são os 30% de média crescimento anual que esta multinacional conseguiu ao longo de quase três décadas de existência", confessa-me, explicando como o nome da empresa traduz o que faz: Collaborate, Innovate, Transform, ou seja, CI&T. Conta-me que já ajudava a especialista em transformação digital há um par de anos, mas a escolha para liderar os processos de afirmação europeia da tecnológica nascida há 27 anos numa garagem em Campinas, Brasil - hoje com presença alargada aos Estados Unidos, China, Japão, Austrália e com escritório no Reino Unido - materializou-se imediatamente antes de a pandemia nos fechar as portas.
"Portugal surgiu-lhes nos planos como interessante pelas condições que tem para empresas de novas tecnologias e pelo facto de aqui se realizar a Web Summit", frisa, antes de enumerar: "Saí daqui dia 8, recomendado por um dos três sócios fundadores, cheguei ao Brasil e as fronteiras fecharam a 12. Foi a última viagem pré-pandemia e fiquei entusiasmado com o ambiente tech e com a carteira de clientes, que tinha gigantes como a Johnson, a Pfizer, a Coca-Cola, várias financeiras..."
A covid acabou por pôr a relação em banho-maria por uns tempos, mas o entusiasmo não abrandou e assim que os astros se alinharam Miguel tornou-se o ponta-de-lança da CI&T para a Europa do Sul. "O meu foco é fazer a empresa crescer em Portugal, solidificar-se aqui, onde abriu o seu delivery center para toda a Europa (tem outros dois no Brasil e mais um na China), o que comprova a interessante aposta que faz no nosso país. Trata-se de trabalho muito qualificado, de um investimento de uma multinacional com 6 mil colaboradores globais, que se move na área do futuro - toda a gente vai precisar de digital e nós podemos ajudar - e que acaba de realizar um IPO em dezembro, entrando na bolsa de Nova Iorque a valer 2 mil milhões de dólares", descreve Miguel Frasquilho, para explicar que a sua missão será construir aqui o brand awarness que a CI&T ainda não tem nesta região, consolidar a presença em Portugal e então expandir a Espanha, Itália...
"Os primeiros anos não serão fáceis, mas depois do desafio da TAP não é nada que me assuste", ri-se, revelando o empenho na nova aventura profissional e alguma digestão já dos maus momentos passados quando a pandemia aterrou a aviação, e ele, enquanto chairman da TAP, teve de negociar transformações difíceis e diárias para garantir a sobrevivência da transportadora aérea portuguesa. Já iremos a esses dias.
Pedimos ovos mexidos - com queijo curado para mim, mistos para ele, sumo de laranja, café - e Miguel conta-me que escolheu o 2D, oculto pelas arcadas do prédio na Conde Valbom, não apenas pela proximidade de casa, onde está a trabalhar enquanto decorrem as obras no escritório da CI&T como por ter dedo dele. É de uns amigos, que abriram a casa há um par de meses, e ele próprio ajudou a selecionar os menus de brunch que ali são servidos.
Estes novos tempos na tecnológica, diz-me, são a continuidade da opção de vida que assumiu quando Passos Coelho o convidou para deixar política parlamentar e aproximar-se do mundo empresarial, aceitando a missão de liderar a AICEP. E não se arrependeu? Ou não sente saudades dos tempos em que o PSD e o Parlamento lhe preenchiam a vida? "Às vezes... mas em muitas outras não", diz depressa, com a gargalhada solta, antes de lembrar que ainda vai participando em iniciativas ocasionais do PSD, mas está bem pacificado com a decisão consciente que tomou. "Hoje vejo de fora. Foram 11 anos de Parlamento e gostei muito, mas passou. E depois a AICEP ainda foi um cargo com imensa exposição. Não me arrependo nada de ter escolhido esta outra vida."
Estávamos ainda nos anos 1990 quando Miguel Frasquilho tomou a via política para "ajudar a cumprir o muito que achava que tinha de mudar no país". Formado em Economia na Católica, com Mestrado em Teoria Económica e filiado desde 1988 no PSD dos seus heróis Sá Carneiro e Cavaco Silva - visita de casa, já que o antigo primeiro-ministro e Presidente da República era padrinho da sua prima e chegara a andar com ele ao colo -, seriam já então a sua desenvoltura, proatividade e vontade de fazer acontecer que o projetariam para essa vida.
Tinha acabado a licenciatura, dava aulas e trabalhava na banca, como consultor do BES, e já tinha assessorado Luís Palha da Silva na secretaria de Estado do Comércio e ajudado Marcelo Rebelo de Sousa, então na liderança do partido. Mas a política ativa e a vida parlamentar só viriam a sério com o PSD de Durão Barroso na oposição. "Tinham saído números de inflação muito maus - os de agora são bem piores e temo que as coisas vão piorar... -, era uma sexta-feira e achei que o PSD não tinha tido uma reação à medida àqueles 4% ou 5% que nos iam deixar em maus lençóis. Então mandei um fax para a Santana à Lapa a focar, ponto por ponto, os temas que achava que se devia tocar. Na segunda-feira, Durão Barroso estava a chamar-me para falarmos e daí em diante foi tudo muito rápido: constituiu-se o grupo Missão Portugal - com muita gente do PSD e do CDS e muitos independentes -, fez-se propostas, intensificou-se o debate. E em 2002 fui convidado para cabeça-de-lista por Setúbal."
Com todos os intervenientes da sua história, política ou não, do seu partido e dos demais, Miguel mantém boas relações. É suave sem ser perder assertividade, respeitador sem esmagar o próprio caráter, sincero sem ser agressivo e dono de um riso que lhe toma a cara e o corpo todo. E isso torna impossível não empatizar logo com ele, como é difícil não lhe respeitar a verticalidade e os princípios, que recusa dobrar. "Sou transparente, nunca escondi nada", resume, com a simplicidade a acompanhar o enorme sorriso.
Com o brunch a meio e ainda antes de chegarmos à viagem mais desafiante da sua vida, os anos de uma TAP a que a pandemia cortou as asas da expansão, conta-me da vida que podia ter tido se tivesse sido brindado com boas capacidades atléticas. "Eu tinha adorado ser futebolista", confessa-me, sportinguista confesso mas antes disso sócio e adepto do Vitória de Setúbal. "Foi o meu tio que me fez sócio logo que nasci e continua a ser o meu clube." O Sporting veio depois, provavelmente por empatia da cor e por oposição à família, maioritariamente benfiquista. Mas a paixão pelo futebol alarga-se a todos os clubes e vem-lhe de menino, dos tempos em que jogava com os amigos a ponta-de-lança e sonhava com uma carreira profissional. "Ainda experimentei ir à baliza, mas o que eu gostava mesmo era de marcar golos. Mas nunca tive jeito nenhum, infelizmente", ri-se. Agora, não dispensa o exercício mas opta por correr - e viu-se forçado a somar a natação à corrida, para fortalecer as costas que já acusam o embate dos 56 anos.
Nesses tempos de miúdo, não sendo futebolista, não tinha ainda grande ideia do que poderia ser. Só sabia o que médico não seria - certeza dada pelos testes psicotécnicos e pela fraqueza nas pernas à menor visão de sangue. Os números, por outro lado, sempre foram a sua praia, desde os tempos em que era aluno da mãe, numa primária de boa memória de que guarda recordações quentes e amigos setubalenses como José Mourinho. "Vivi sempre em Setúbal até acabar o curso", conta-me, descrevendo as idas e voltas de camioneta em que demorava hora e meia até à Católica, uma rotina que se tornou impossível quando começou a carreira mas que não o afastou da sua terra nem da mãe, hoje com 89 anos. "Somos muito próximos e pelo menos uma vez por semana juntamo-nos (a mãe, Miguel, o irmão, mulher e filhos) em família, em casa dela ou fora, a comer um bom peixe assado em Setúbal. Sou um cidadão do mundo, mas serei sempre um setubalense de gema", confessa.
Essa paixão por viajar que faz dele um "cidadão do mundo" vem-lhe da infância, todos os anos levado a passar dois meses com o pai, que era comandante da marinha mercante e lhe deu a oportunidade de conhecer, em plenos anos 70, destinos exóticos como o Japão, Leninegrado, a Argentina ou a África do Sul. Viajar é até hoje uma das suas paixões e já planeia levar agora os dois sobrinhos com ele. Nada que o faça pensar em reforma. "Acho que vou estar ativo sempre, enquanto puder e for útil, Deus me dê as condições físicas e mentais, porque não me vejo sem fazer nada." Talvez por isso não tenha pejo em preencher os tempos livres com as atividades que o apaixonam, incluindo o cinema - é fã incondicional da trilogia O Senhor dos Anéis, que revê e relê vezes sem conta - e a música. "Tenho um piano em casa e cheguei ao 12.º grau do Conservatório Nacional; tive aulas até aos 30 anos", diz-me, confessando-se fã de Mozart, Beethoven, Tchaikovsky (Bach é o seu ódio de estimação pelas dificuldades práticas), ainda que hoje não tenha já coragem para tocar nem entre amigos. "Mas sou grande fã de música em geral." Qual? "Sou um comercialão, gosto de tudo... os meus amigos chamam-me foleiro, mas o meu grupo de referência são os Abba, e sou apaixonado por uma cantora que acho que era A voz, Whitney Houston. E a canção que levámos à Eurovisão era linda! Não há simbiose mais perfeita para cantar em português e inglês do que a "saudade", que não tem tradução."
Com o nosso encontro a chegar à reta final, passamos ao único momento planeado da sua vida. 2014 foi o ano que lhe mudou o caminho e se não sabia onde essa curva o levaria - o convite para liderar a AICEP -, não tem dúvidas de que correu bem. "Orgulho-me do percurso que fiz na AICEP, no que consegui realizar, e sobretudo na conquista de termos aberto delegações em todos os países de língua portuguesa - não havia na Guiné-Bissau, em São Tomé e em Timor e era um sinal que achei importante darmos e felizmente foi entendido pelo Estado."
Quando o mandato na agência para a promoção externa do país terminou, Miguel sentou-se com o então já primeiro-ministro António Costa para lhe comunicar o sentimento de missão cumprida e a vontade de seguir novos caminhos na vertente empresarial. Foi provavelmente essa conversa que o pôs na rota da TAP, quando foi preciso escolher um chairman. "António Costa fez-me o convite e achei giríssimo - eu tinha toda a experiência de exportação dos anos de AICEP, de décadas de viagens e uma enorme paixão por aviões - e disse logo que sim. Até porque o cargo não requeria conhecimentos técnicos - a ideia era eu ser representante do acionista Estado na relação com o acionista de referência privado, numa excelente fase da companhia, não ia para tomar decisões estruturais."
A crise trazida pela pandemia acabou por obrigá-lo a isso e a muito mais. "Era chairman, mas muitas vezes senti-me executivo, tinha de tomar decisões, tínhamos reuniões de administração todas as semanas, tomávamos decisões difíceis diariamente, tivemos de cortar salários... e todos os planos que tínhamos para o crescimento ficaram em banho-maria. Foi um pesadelo, mas fiquei ainda mais com a TAP no coração." Se hoje elogia os sindicatos e a "grande dose de realismo" de todos os intervenientes que tornou possível a sobrevivência da companhia, admite que fez agora uma mudança radical: "Deixei uma senhora de 77 anos, pesada e complexa para entrar numa empresa jovem, leve e superágil", diz, o brilho a denunciar de novo o entusiasmo pelo potencial da CI&T. "Mas fiz a transição de forma pacífica e sempre consegui manter boas relações com toda a gente." Mesmo quando aceitou representar o governo da geringonça na TAP? "Falei com quem tinha de falar antes de a decisão ser pública, tratei toda a gente com respeito e sei que houve quem me criticasse no PSD, mas a maioria das pessoas - as que importavam mesmo - perceberam a minha decisão", diz-me, antes de nos despedirmos.