A fila estende-se por mais de uma centena de metros..A manhã nem vai a meio, mas a discreta Via Ricasoli é já um mar de gente, disposta a aguardar, cheia de infinita paciência, pela sua vez de entrar no número 58 - é ali que fica a Galeria da Academia. "É espera para hora e meia", diz filosófico o segurança que controla as entradas e a multidão. Está habituado, acerta quase sempre. Hora e meia depois, lá vamos, na onda de gente, em direção ao local: a sala ampla, iluminada pela luz solar que atravessa a abóbada, feita assim para isso mesmo. No centro, majestoso, imenso, imaculado, naquela quietude que parece anteceder a ação, lá está ele, o David, de Miguel Ângelo..A Galeria da Academia é um dos museus mais concorridos de Florença, e a multidão que diariamente se concentra à porta, durante quase todos os dias do ano (a temporada de inverno é mais sossegada), tem aquele propósito. Quase ninguém vai ali admirar as estátuas de Os Escravos, do mesmo vulto renascentista, nem as pinturas impressivas de um rol de outros artistas da época, que enchem os livros de história da arte, ou sequer admirar as coleções de Stradivarius (violinos, violas de arco e violoncelos que pertenceram aos Medici, os míticos senhores de Florença por quase três séculos), os seus valiosos cravos ou os exemplares dos primeiros pianos que o italiano Bartolomeo Cristofori construiu em Florença, em 1700, por encomenda dos Medici - quem mais?.Não. O objetivo de tanta espera é admirar o David. Fotografar o David, de todos os ângulos possíveis, e fazer selfies com o David. Esta escultura de quatro metros de altura, feita no mais puro mármore de Carrara, encarna no imaginário coletivo o próprio espírito do Renascimento, a par de algumas outras obras icónicas - O Nascimento de Vénus, de Sandro Botticelli, o teto da Capela Sistina, em Roma, também de Miguel Ângelo, e, claro, a Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, o mais mítico de todos os homens do Renascimento..Natural de Archiano, na região de Florença, Leonardo fez a sua formação no ateliê de Andrea del Verrocchio, um pintor florentino que ensinou grande parte da nova geração que se afirmou nas décadas seguintes. Leonardo mudou-se depois para Milão e seguiu o seu caminho, mas foi em Florença que na segunda metade do século XV despontou o movimento do Renascimento. Uma época extraordinária, atravessada por um sopro incontrolável de ideias novas, que tudo tocou, da arte à política, das ideias à música, da poesia à literatura e à ciência. E foi a partir daquela cidade que esta época se estendeu ao resto da Europa e a transformou numa outra, depois de século e meio de ebulição..Porquê Florença? Foi ali, numa conjugação feliz, que se reuniram as condições para que tal acontecesse. Entre elas, o aparecimento de novas e abastadas famílias de comerciantes, que iniciaram prósperas atividades na banca, como os Medici. A tensão política com cidades rivais como Nápoles, Milão ou Veneza gerou uma competição pelos melhores artistas e as melhores obras (de pintura, poesia, arquitetura, escultura, música). Foi ali que se verificou um novo humanismo cristão, que foi beber aos textos clássicos da Grécia e de Roma e que, impulsionado pelas novas possibilidades de divulgação da então recém-inventada imprensa - em 1440, pelo alemão Johannes Gutenberg -, propagou as novas ideias a uma velocidade até aí impossível..Tudo isto junto, e o surgimento de gerações de artistas inovadores e universalistas, que se dedicaram a estudar anatomia para melhor reproduzir as proporções do corpo humano, que criaram a perspetiva para dar profundidade às suas pinturas, ou que enriqueceram a linguagem musical com surpreendentes rendilhados de vozes e instrumentação, deram origem àquela revolução artística, que se estendeu a outros países e regiões, assumindo particularidades em cada um deles..No movimento das novas ideias, em busca de um lugar central para o ser humano, Erasmo de Roterdão, a par de outros, como Thomas More, em Inglaterra, foi uma figura central, ao pôr em causa a escolástica e o formalismo religioso herdados da igreja medieval. Fê-lo em obras literárias de referência que contagiaram os outros académicos europeus..Foi o caso, em Portugal, da chamada geração de Quinhentos. Formados nas universidades europeias que estavam a ser varridas por estas novas ideias, o cronista e compositor Damião de Góis ou o matemático, médico e cosmógrafo Pedro Nunes são apenas dois desses portugueses universalistas que encarnaram no país o espírito da época. A partir de meados do século XVI, a Inquisição acabaria por silenciá-los a todos, impondo um ambiente religioso fechado - e perigoso, para quem não pensasse de acordo com os apertados cânones de Roma. Mas, em Portugal, uma outra aventura sem precedentes estava em marcha já desde o final do século XV: a das navegações oceânicas. E essa foi uma outra grande mudança para o mundo de então.
A fila estende-se por mais de uma centena de metros..A manhã nem vai a meio, mas a discreta Via Ricasoli é já um mar de gente, disposta a aguardar, cheia de infinita paciência, pela sua vez de entrar no número 58 - é ali que fica a Galeria da Academia. "É espera para hora e meia", diz filosófico o segurança que controla as entradas e a multidão. Está habituado, acerta quase sempre. Hora e meia depois, lá vamos, na onda de gente, em direção ao local: a sala ampla, iluminada pela luz solar que atravessa a abóbada, feita assim para isso mesmo. No centro, majestoso, imenso, imaculado, naquela quietude que parece anteceder a ação, lá está ele, o David, de Miguel Ângelo..A Galeria da Academia é um dos museus mais concorridos de Florença, e a multidão que diariamente se concentra à porta, durante quase todos os dias do ano (a temporada de inverno é mais sossegada), tem aquele propósito. Quase ninguém vai ali admirar as estátuas de Os Escravos, do mesmo vulto renascentista, nem as pinturas impressivas de um rol de outros artistas da época, que enchem os livros de história da arte, ou sequer admirar as coleções de Stradivarius (violinos, violas de arco e violoncelos que pertenceram aos Medici, os míticos senhores de Florença por quase três séculos), os seus valiosos cravos ou os exemplares dos primeiros pianos que o italiano Bartolomeo Cristofori construiu em Florença, em 1700, por encomenda dos Medici - quem mais?.Não. O objetivo de tanta espera é admirar o David. Fotografar o David, de todos os ângulos possíveis, e fazer selfies com o David. Esta escultura de quatro metros de altura, feita no mais puro mármore de Carrara, encarna no imaginário coletivo o próprio espírito do Renascimento, a par de algumas outras obras icónicas - O Nascimento de Vénus, de Sandro Botticelli, o teto da Capela Sistina, em Roma, também de Miguel Ângelo, e, claro, a Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, o mais mítico de todos os homens do Renascimento..Natural de Archiano, na região de Florença, Leonardo fez a sua formação no ateliê de Andrea del Verrocchio, um pintor florentino que ensinou grande parte da nova geração que se afirmou nas décadas seguintes. Leonardo mudou-se depois para Milão e seguiu o seu caminho, mas foi em Florença que na segunda metade do século XV despontou o movimento do Renascimento. Uma época extraordinária, atravessada por um sopro incontrolável de ideias novas, que tudo tocou, da arte à política, das ideias à música, da poesia à literatura e à ciência. E foi a partir daquela cidade que esta época se estendeu ao resto da Europa e a transformou numa outra, depois de século e meio de ebulição..Porquê Florença? Foi ali, numa conjugação feliz, que se reuniram as condições para que tal acontecesse. Entre elas, o aparecimento de novas e abastadas famílias de comerciantes, que iniciaram prósperas atividades na banca, como os Medici. A tensão política com cidades rivais como Nápoles, Milão ou Veneza gerou uma competição pelos melhores artistas e as melhores obras (de pintura, poesia, arquitetura, escultura, música). Foi ali que se verificou um novo humanismo cristão, que foi beber aos textos clássicos da Grécia e de Roma e que, impulsionado pelas novas possibilidades de divulgação da então recém-inventada imprensa - em 1440, pelo alemão Johannes Gutenberg -, propagou as novas ideias a uma velocidade até aí impossível..Tudo isto junto, e o surgimento de gerações de artistas inovadores e universalistas, que se dedicaram a estudar anatomia para melhor reproduzir as proporções do corpo humano, que criaram a perspetiva para dar profundidade às suas pinturas, ou que enriqueceram a linguagem musical com surpreendentes rendilhados de vozes e instrumentação, deram origem àquela revolução artística, que se estendeu a outros países e regiões, assumindo particularidades em cada um deles..No movimento das novas ideias, em busca de um lugar central para o ser humano, Erasmo de Roterdão, a par de outros, como Thomas More, em Inglaterra, foi uma figura central, ao pôr em causa a escolástica e o formalismo religioso herdados da igreja medieval. Fê-lo em obras literárias de referência que contagiaram os outros académicos europeus..Foi o caso, em Portugal, da chamada geração de Quinhentos. Formados nas universidades europeias que estavam a ser varridas por estas novas ideias, o cronista e compositor Damião de Góis ou o matemático, médico e cosmógrafo Pedro Nunes são apenas dois desses portugueses universalistas que encarnaram no país o espírito da época. A partir de meados do século XVI, a Inquisição acabaria por silenciá-los a todos, impondo um ambiente religioso fechado - e perigoso, para quem não pensasse de acordo com os apertados cânones de Roma. Mas, em Portugal, uma outra aventura sem precedentes estava em marcha já desde o final do século XV: a das navegações oceânicas. E essa foi uma outra grande mudança para o mundo de então.