Miep Gies, a mulher luminosa que quase salvou Anne Frank
Se não fosse Miep Gies, talvez não houvesse O Diário de Anne Frank. Imagine-se essa hipótese por breves segundos. Foi o seu impulso de guardar o famoso caderno vermelho axadrezado, após a fatídica invasão do anexo onde se encontravam os Frank, que permitiu preservá-lo e fazê-lo chegar a quem de direito - Miep esperava devolvê-lo à própria Anne, quando a guerra acabasse, mas entregou-o ao pai, Otto Frank, depois de receberem a notícia trágica... Seja como for, não é sobre Anne e o seu diário que se debruça Uma Pequena Luz, a minissérie disponível no Disney+. Esta produção National Geographic recupera, tal como o diário foi recuperado, a história dessa secretária que zelou pela sobrevivência dos oito judeus escondidos no anexo dos escritórios da empresa de Otto, juntando-se ao espírito de resistência de vários holandeses numa Amesterdão ocupada.
Depois de tantas abordagens narrativas do caso de Anne Frank, esta mudança de ângulo é muito bem-vinda. Não apenas por privilegiar uma suposta personagem secundária, mas também porque através dela acedemos à ideia de uma ação conjunta eventualmente pouco reconhecida. Quem era então Miep Gies? A série começa por mostrá-la a conduzir Margot, a irmã mais velha de Anne, para o esconderijo. E escolhe, em jeito de nota de apresentação, o momento em que as duas têm de passar um posto de controlo nazi, de bicicleta: Margot treme como varas verdes, enquanto Miep lhe diz que ela "é muito mais forte do que pensa"... Quando dão por isso, o desenrascanço da jovem secretária já surtiu efeito, e nós espectadores ficámos com uma noção clara do caráter da protagonista. Alguém com uma desenvoltura natural, disposta a arriscar-se pelos seus amigos.
Mas há muito mais nesta encantadora figura interpretada por Bel Powley (a atriz revelação do filme O Diário de Uma Rapariga Adolescente). Austríaca que cresceu numa família adotiva holandesa, Miep encontrou trabalho como secretária de Otto Frank numa altura em que as suas opções de vida eram quase nulas: ou arranjava um emprego, ou, segundo os pais adotivos, deveria casar com um dos irmãos, que por acaso era gay. Essa situação deu-lhe sentido de urgência e reforçou o seu desembaraço quotidiano, que viria a ser muito útil na tarefa de arranjar comida para o grupo escondido no anexo, e também em matéria amorosa. Digamos que o primeiro encontro com o futuro marido, Jan Gies (Joe Cole), em que este lhe fala do livro que anda a ler - A Metamorfose, de Kafka -, não resulta num quadro muito romântico. Mas quando ambos discutem os mal-entendidos desse encontro, e pouco depois juntam os trapinhos, a série avança num olhar ágil e comovente sobre o modo como cada um deles foi capaz de dar o melhor de si para auxiliar aqueles que eram vítimas da perseguição do exército de Hitler.
Criada por Joan Rater e Tony Phelan (argumentistas de Anatomia de Grey), A Small Light é essencialmente um conto sobre a coragem humana dos que não hesitaram na escolha de estar do lado certo da História. Miep, em colaboração com os colegas de escritório, fez tudo ao seu alcance para proteger os Frank e os outros residentes do anexo (conseguiu-o durante dois anos, entre 1942 e 1944), enquanto o marido, assistente social de profissão, se envolveu com a Resistência, arranjando esconderijos para bebés e crianças judias. Os oito episódios da série passam sobretudo pelas emoções e pelo risco dessa ação diária, que se ia tornando cada vez mais perigosa conforme subia o tom da ocupação nazi.
Importa realçar também o Otto Frank de Liev Schreiber. Na verdade, a nobreza da amizade entre o empresário alemão e a sua secretária aguerrida é outro dos alicerces deste drama, que tem tudo que ver com a força das relações e a expressão de humanismo. As conversas entre os dois são momentos de quietude de espírito e confiança mútua, em contraste com a tagarelice adolescente de Anne, que encontra em Miep o consolo necessário para espairecer das discussões com a mãe e uma amiga para falar da sua paixoneta por Peter van Pels... Não deixa de ser arrojada esta opção de a colocar como personagem secundária, mas o grande ganho emocional da série está precisamente em pôr-nos do lado de quem viu o terror acontecer sem poder fazer mais. É por isso que, mesmo conhecendo o final, a ansiedade daquelas personagens é tão palpável - sentimos na pele cada minuto, cada impulso de reação, e o peso da pergunta: e agora?
A licença dramática sobre os eventos reais, que vem sinalizada no início de cada episódio, não fere minimamente a essência verídica desta história, contada com a energia adequada e, por vezes, um charme humorístico que alivia o vislumbre da tragédia. É uma produção de época calorosa, que extrai da interpretação de Bel Powley a luminosidade certa. Aliás, o título refere-se mesmo a uma frase típica de Miep Gies (que viveu até aos 100 anos!), a qual recusava o atributo de heroína: "Até uma simples secretária, uma dona de casa ou uma adolescente pode, dentro dos seus poucos meios, acender uma pequena luz num quarto escuro."
A beleza da série está também contida nesse destaque de uma mulher comum que soube agir perante as trágicas circunstâncias históricas. De resto, um cenário cuja memória deve ser preservada, ou não tivesse o retrato da ocupação nazi da Holanda ecos no presente: "É uma reminiscência do que aconteceu na Ucrânia o ano passado", referiu Powley em entrevista ao jornal The Guardian. Já Liev Schreiber contou ao The Washington Post que estava a passar algum tempo com os filhos no sofá, "a tentar descobrir como lhes explicar a guerra na Ucrânia", quando lhe chegou às mãos o argumento de Uma Pequena Luz. Nas suas palavras, "um ótimo exemplo de como estas coisas encontram uma maneira de se repetir".