Meyong e Silas. A difícil despedida dos relvados sem dizer adeus ao futebol
Era uma vez... um camaronês e um português, ambos de origem humilde, que gostavam muito de brincar à bola na rua. Certo dia começaram a jogar futebol a sério e viriam a tornar-se duas grandes referências do campeonato português. Um foi até campeão olímpico pelos Camarões, o outro chegou a representar a seleção nacional portuguesa. Neste ano decidiram pôr um ponto final na carreira. Meyong disse adeus aos 36 anos, com a camisola do Vit. Setúbal, depois de 17 épocas, 13 delas no campeonato nacional, onde fez 232 jogos e marcou 79 golos. Silas despediu-se dos relvados com a camisola do Cova da Piedade, aos 40 anos, 22 deles passados nos relvados (nove épocas na I Liga, 236 jogos e 29 golos)...
E agora? O que vão fazer? Como decidiram dizer adeus aos relvados? No caso de Albert Meyong Zé, Zezé para os amigos, a decisão de abandonar foi "acontecendo", conta o avançado, que em janeiro de 2013 recebeu uma proposta do FC Porto, mas optou por ir para Angola (e os dragões contrataram Liedson): "Podia ter sido campeão no FC Porto, mas não me arrependo, foi uma decisão bem pensada, também fui campeão no Kabuscorp e fui feliz lá. Já tinha 31 anos e comecei a pensar no fim da carreira, a parte financeira pesou mais."
Foi em Angola que Zezé sentiu as pernas a deixar de corresponder como antes. "Foi uma fase difícil [pausa]. O que nós sabemos fazer não desaparece e até melhora com os anos, mas deixas de executar os movimentos como queres. Tu queres fazer, mas o corpo já não acompanha a mente e aí sentes que tens de pensar em terminar", admitiu o avançado, lamentando que, em Portugal, ainda se olhe para os jogadores com mais de 30 anos como "velhos" e "acabados". Até porque hoje treina-se melhor e com mais produtividade, na opinião dele. Quer dizer, depende dos treinadores: "Aos 22 anos não aguentava os treinos do Jesus [risos] no Setúbal. Eram muito duros."
Já Silas não sentiu o corpo ceder. "Senti-me bem até ao final. Não preciso de ser muito explosivo e rápido para ser bom médio. E fui adaptando o meu jogo à realidade das equipas onde joguei. Antes era muito rápido e fazia muitas diagonais, agora fazia mais diagonais curtas, analisava o jogo, corria menos...", defende o médio, que já tinha pensado deixar de vez o futebol várias vezes, mas foi sempre tendo propostas e nunca teve problemas ou preconceitos em jogar em campeonatos ou em equipas modestas, como o Cova da Piedade.
E há um pormenor que faz toda a diferença para chegar aos 40 anos e jogar: apanhar treinadores seguros de si próprios, que não pensem que lhe querem roubar o lugar: "Eu sou muito comunicativo dentro de campo, aquela coisa de um treinador em campo, e isso é muito bom quando tens 25 ou 30 anos, mas a partir de uma certa idade já não é espetacular e há muitos treinadores que começam a pensar "ai que este gajo quer é o meu lugar". E passas a ser uma ameaça. A partir de certa idade, jogamos porque queremos, mas só se tivermos oportunidades e equipas a querer-nos."
Ambos reconhecem que depois dos 30 um jogador já não se pode "dar ao luxo de ter um único jogo mau". O mesmo se aplica às lesões. "Ao fim de tantos anos aprendes que não podes estar a jogar e a ouvir a bancada. E não podes esperar unanimidade. Quando alguém diz que és bom jogador, há sempre alguém que acha que não. Se há quem critique o Ronaldo, que é o melhor jogador do mundo, não vão criticar o Meyong e o Silas?!", interroga-se o português.
Meyong sempre gostou de marcar golos, mas do que vai sentir saudade é de jogar futebol, das rotinas de balneário, dos treinos, do ambiente dos jogos. Afinal passou metade da vida num campo de futebol. Mas para Silas "o pior vai ser depois das férias", quando vir colegas e amigos a começar a época e ele não, pela primeira vez em 22 anos.
A ideia de ambos é ficarem ligados ao futebol. Mas enquanto Silas quer vestir o fato de treino e treinar - "tenho o curso de segundo nível e vou frequentar o de terceiro nível" -, Meyong prefere o fato e gravata como diretor desportivo. Por isso anda a informar-se sobre cursos de Gestão Desportiva para, quem sabe, trabalhar no Vitória. Setúbal foi o primeiro e último amor de Zezé. Também por culpa de uma vitoriana ferrenha, que lhe roubou o coração e lhe deu duas filhas. Mas tanto ele como Silas garantem estar aptos "a fazer qualquer coisa", porque a vida os preparou para tal e porque não são de ficar à sombra de um estatuto qualquer ganho como jogadores.
O futebol de rua no início
Para Albert Meyong Ze, uma bola e um pedaço de rua em Yaoundé chegavam para ele e os irmãos brincarem. Chuteiras não havia e nem eram precisas, era de pés descalços mesmo que "os remates saíam bem". Um dia alguém o viu jogar no recreio e pediu-lhe para ir ao clube da terra. "Foram falar com o meu pai para ir lá treinar com eles, mas o meu pai não quis, dizia que a escola é que tinha de vir em primeiro plano", recordou o camaronês, que depois, por "circunstâncias da vida", acabou por ir mesmo. O pai morreu, a mãe não trabalhava e tinha dificuldade em o manter na escola, por isso o clube ofereceu-se para pagar os estudos. E assim, aos 15 anos, sem outra formação que não a do futebol de rua, Meyong começou a jogar no Yaoundé.
O talento para marcar golos era evidente e despertou o interesse de Thomas N"Kono, antigo guarda-redes da seleção no Mundial"90, que tinha virado empresário e o levou para Itália, jogar no Ravenna. "Felizmente", a mãe deixou-o seguir o sonho. Mas o caminho até Setúbal foi longo...
Depois do campeonato Primavera (júnior) em Itália foi treinar ao Mérida (Espanha) e chegou a assinar contrato, mas o clube estava falido e não podia cumprir o contrato, por isso rescindiu. N"Kono tinha um contacto em Portugal - ainda hoje Meyong não sabe quem - que o mandou vir treinar ao Benfica B. "Fiz uns treinos e o treinador, o José Morais, chamou o meu empresário e disse que era um desperdício eu ficar a jogar na 2.ª divisão B e que conhecia um treinador da 1.ª divisão que precisava de um avançado", contou. O treinador dava pelo nome de Rui Águas e o clube era o Setúbal. Tinha 19 anos e assinou logo contrato com os sadinos.
Por essa altura, em 1999, já Silas jogava no Ceuta, de Espanha. Mas o início da história do português é algo parecida com a do amigo Zezé, como lhe chama. Começou a jogar nas ruas de um bairro social de má fama, a metros do extinto Casal Ventoso. "Na minha infância e adolescência, foi quando apareceu em força a heroína e houve muita gente a dar cabo da vida por causa do vício. Era um mercado de droga a céu aberto, tinha tudo para me ter perdido, mas a minha obsessão pelo futebol era tão grande que me afastou daquilo tudo", revela, ele que viu morrer cedo um amigo de infância por causa da droga: "Eu tinha tudo para ser bandido menos cabeça, porque a minha cabeça era só futebol."
Aos 10 anos decidiu ir com os amigos às captações do Domingos Sávio, em Campo de Ourique (Lisboa). Ficou. Gostou da experiência e no ano a seguir foi fazer testes ao Sporting. "Éramos uns 300 miúdos e eu fiquei. Ia todos os dias para o treino sozinho. Tinha de me desenrascar. O meu pai ia-me buscar à noite depois do treino, não tínhamos carro, íamos de transportes e só chegava a casa depois das 23.00..."
A experiência de leão ao peito durou só dois anos. Tinha 13 anos e o Sporting queria emprestá-lo. "Já não sei a quem. E eu disse "não, se vou ser dispensado, eu que decido para onde quero ir". E fui para o Atlético." Depois de uns anos a jogar na Tapadinha, foi à experiência ao Campomaiorense, mas João Alves disse-lhe que não estava preparado para jogar na 1.ª divisão. Foi ao Salgueiros e Dito disse-lhe o mesmo. Começou a pensar que se calhar tinham razão. Afinal, tinha 21 anos e não era fácil naquela altura apostarem em jovens jogadores. E até a avó, a segunda mãe, com quem vivia, não achava muita piada ao futebol e queria que fosse trabalhar: "Só que eu era muito teimoso e disse-lhe que não... e hoje ela dá graças a Deus por eu ter sido teimoso. Porque além de o futebol me fazer feliz, permitiu-me ajudar a família."
Acabou por chegar uma oferta boa para o Atlético (60 mil euros em 1998) e para ele, que ganhava cem contos (500 euros) e ofereciam-lhe 600 contos (3000 euros). Nem hesitou. Foi para o AC Ceuta (2.ª B espanhola), deu "um salto muito grande" como jogador e começou a pensar em ser profissional: "Até dormia a pensar no futebol."
Foi em Espanha que apanhou pela frente Guardiola, o melhor médio com quem dividiu o campo: "Ele pensava o jogo com um a rapidez que não me dava tempo para fazer uma aproximação, jogava sempre a um toque... Saí do jogo mesmo impressionado, nunca apanhei um médio que me impressionasse tanto, incrível, o Guardiola pensava o jogo cinco segundos antes de mim."
Passou pela U. Leira e por Inglaterra, onde provavelmente atingiu o auge. Seguiu-se o Marítimo, até Carlos Carvalhal o convidar para o Belenenses. "Nem pensei duas vezes. Também tinha uma oferta do Vit. Guimarães, mas quando ele me disse Belenenses foi esquecer tudo o resto. Eu cresci a ver o Belenenses, quando era miúdo vinha para o Restelo ver treinos e jogos do Rui Esteves", lembrou Silas, que chegou ao Restelo ao mesmo tempo que Meyong.
Partilharam o balneário apenas um ano, mas sempre se deram bem, mesmo quando adversários. E Silas lembra-se bem de como Meyong contribuiu para a caixa de multas do balneário azul, com os atrasos. "Eu chegava sempre a horas, ele é que chegava antes. Se eu tenho de estar lá às 10.00, chego às 10.00 ou às 09.59 [gargalhada]", defende-se o luso-camaronês. Nessa época (2005-06), o avançado foi o melhor marcador do campeonato, com 17 golos, e lembra-se que, dos grandes, a maior vítima era o Sporting. Aliás, foi ele que impôs uma derrota ao Sporting na despedida do velho Estádio de Alvalade, em 2003, então pelo Vit. Setúbal (4-3).
Depois foi para Espanha e voltaria ao Restelo em 2008 para ser protagonista de um caso que levou o Belenenses a perder seis pontos: Meyong já tinha jogado por duas equipas na liga espanhola quando foi contratado. "Eu sabia lá, queria era jogar e fazer golos."