Merkel e os SMAS de Sintra
Um país é tão complexo como a própria vida. Não é tudo bom nem é tudo mau. Comparando com a Alemanha, Portugal tem coisas fantásticas, como por exemplo o sistema multibanco. Na Alemanha, os meus amigos continuam a pagar taxas exorbitantes quando levantam dinheiro nas caixas automáticas de bancos concorrentes, e o software do multibanco nem tem um quarto das funcionalidades do sistema português.
Vivendo em Portugal noto que também há espaço para melhorar coisas que não correm tão bem. Quando me mudei para a minha casa numa localidade perto de Sintra, reparei num tanque com água que o antigo proprietário deixou no jardim. Como tinha uma torneira exterior mesmo ao lado, retirei a água do tanque e comecei a usá-lo como contentor para compostagem. O que não sabia era que no universo dos Serviços Municipalizados de Sintra (SMAS) ter uma torneira não significa que haja sempre água.
Vivo num bairro que foi construído há quase 40 anos para uma classe média emergente após o 25 de Abril. Desde então, muitas coisas mudaram, mas a canalização continua a ser a mesma de sempre. Sete a dez vezes por ano, a conduta de água rebenta e as torneiras no bairro pifam por várias horas. Rapidamente chega a cavalaria dos SMAS de Sintra: o piquete, uma escavadora e uma carrinha cheia de homens musculados. Abrem um buraco enorme no passeio, cortam a antiga conduta em fibrocimento e substituem o pedaço por um tubo de PVC. Depois fecham o buraco com areia e deixam atrás um campo de lama que bem se podia aproveitar para filmar um desses anúncios de uísque em que outros homens musculados jogam uma partida de polo em tronco nu.
Já fiz várias reclamações em Sintra, e uma vez obtive resposta encorajadora. Um engenheiro deixou uma mensagem no voice mail do meu telefone fixo. Os SMAS, disse o engenheiro, iam substituir a canalização na minha localidade no verão do ano seguinte. Isto foi antes da crise. Guardei a mensagem por vários anos como prova de que os SMAS não estavam a fazer o que tinham prometido. As condutas continuavam a rebentar e nada acontecia. Por fim, mudei de operador de telecomunicações e perdi a prova da promessa do engenheiro para sempre.
Um dia em que não havia água, decidi passar pelo local do crime. Um homem estava a escavar e sete colegas ficaram no passeio a olhar para o buraco. Dirigi-me a um deles que tinha ar de chefe e perguntei--lhe porque é que os SMAS de Sintra não investiam na substituição da conduta antiga para resolver de uma vez por todas o problema. O homem olhou para mim com um ar desconfiado e disse: "Porque é que você não pergunta à senhora Merkel?" Sabia da inexistência de investimento público em Portugal que, para muitos, se devia a uma política de austeridade cuja advogada mais visível até poderia ser Angela Merkel. Mas, neste momento, perguntava-me se este homem que estava a olhar para um buraco com uma conduta de água rebentada saberia que eu era alemão. Fiquei perplexo, porque, ao contrário de muitos dos meus compatriotas, não costumo vestir meias com sandálias.
De facto, quase que já tive uma oportunidade de fazer uma pergunta à Angela Merkel. Foi em novembro de 2012, numa conferência de imprensa conjunta com Pedro Passos Coelho no Forte de São Julião da Barra, em Oeiras. Havia 70 jornalistas portugueses e alemães presentes na sala, e quatro perguntas foram permitidas. Não fui escolhido e, mesmo se tivesse sido, tenho alguma dúvida se teria perguntado nessa ocasião à Angela Merkel por que razão não autorizou o investimento necessário dos SMAS de Sintra para que fosse feita uma substituição de aproximadamente três mil metros de conduta de água na minha localidade.
Não disse isso ao homem que estava a olhar para o buraco, porque poderia parecer que estava a defender Angela Merkel ou a política de austeridade. Disse-lhe: "Continuação de bom trabalho", e voltei para casa. Fui ao jardim. Tirei a compostagem do meu tanque. Lavei-o. E enchi-o com água. Se as coisas não acontecem, pensei eu, temos de fazê-las acontecer.
Jornalista alemão, a trabalhar em Lisboa para a Deutschland Radio