Mercedes Ruiz. Um corpo que respira baile
O calor na sala é implacável. Mercedes Ruiz escorre, volteia e serpenteia sobre si feroz e imune à térmica. Acelera e abranda num compasso obstinado. Quando se suspeita da sua resistência sobrenatural, interrompe o ensaio, bebe água e dirige-se à porta. Abre as portadas e fixa o olhar no nada. Na rua. Inspira e expira uns minutos tranquilamente, reservada no gesto e no olhar dócil. A brisa de fim de tarde ordena tréguas ao calor inclemente do dia. Refresca-se e volta para dentro. Olha para os músicos e sorri. Parecem adivinhar cada segundo de vontade, cada batida de coração, cada instante de retorno ao chão. Seguem-na firmes, como só fazem os amigos. Ela dirá, mais tarde, que os seus músicos têm mesmo de ser seus amigos. Estão juntos nas palmas, no ritmo, na intensidade e na paixão. O flamenco é a sua, deles, vida. Uma escolha de sangue, corpo e alma que mostram quase todos os fins de semana, batendo a estrada dos quatro cantos do mundo. Voz, guitarra, percussão e ela, Mercedes. Hoje constipada sem poder ligar o ar condicionado, mas imparável até à palma final.
No café ao lado do estúdio de dança, o flamenco habita rotinas de clientes e empregados em Jerez de la Frontera, a pequena cidade da Andaluzia que viu nascer tantos ilustres nomes desta arte secular. A dona do estabelecimento desenrola, orgulhosa, o poster de Mercedes Ruiz enquanto reparamos na imagem de Camarón de La Isla, uma lenda entre os maiores, por cima do balcão. Também António Chacón pisou as calles de Jerez, entre 1869 e 1929 com os seus amigos irmãos Molina. E Lola, a eterna Lola Flores, nativa do barrio de San Miguel, cuja estátua repousa a dois passos dali.
Por estes dias, a herança do flamenco ecoa nas garras tenazes das novas gerações, perpetuando a história entre as cordas das guitarras, o grito do cante e os sapatos de baile. Mercedes tem um sapato tatuado nas costas. Desde os 4 anos que dança. Aos 36, mantém-se no estrelato. Aprendeu com os melhores, arrecadou vários prémios e faz render plateias ao seu magnetismo.
Treina-se pelo menos três horas por dia, todos os dias, os raros fins de semana livres sabem-lhe a férias com a família. É casada e tem uma filha de 6 anos. Aclamada pela crítica internacional, distingue-se pela modernidade, honrando a tradição do flamenco. "Mercedes é a união perfeita entre a tradição e o arrojo, entre o conhecimento do flamenco na sua raiz e o domínio de uma técnica apuradíssima, mas com um sentido expressivo único. É uma mulher com medos e inseguranças, mas entra em palco e torna-se magnética", dirá Paco López, o seu diretor de cena, com quem trabalha há cinco anos, desde que Mercedes lhe pediu para evoluir enquanto intérprete.
Também Rodrigo Francisco, diretor do Festival de Teatro de Almada, não pensou duas vezes quando lhe falaram da bailarina e lançou--lhe rapidamente o convite para atuar na última noite do festival. Sente que Mercedes Ruiz se inscreve no núcleo de criadores que aliam a tradição popular à modernidade e à evolução, retendo para si um perfil especial. "Parece-me que ela reúne tudo isto e também, o que é para mim o mais importante, tem "duende", como diria García Lorca dos artistas que ficavam possuídos por uma energia difícil de explicar. Mágica, talvez, e só nestes minutos de ensaio se percebeu que algo opera dentro dela", justifica.