Mercado Único Digital. Liberdade de escolha dos artistas é inegociável
Portugal completou, no dia 7 de junho, um ano de atraso na transposição da diretiva relativa ao Direito de Autor e Direitos Conexos no Mercado Único Digital (Diretiva MUD), um instrumento essencial para criar, à escala europeia, verdadeiras condições de mercado e sujeitar as grandes plataformas de conteúdos (como o YouTube, Instagram ou Facebook) a obrigações de licenciamento idênticas a qualquer outra plataforma de distribuição digital de música (como o Spotify ou a Apple).
Por isso mesmo, a Comissão Europeia "intimou" Portugal a legislar sobre a matéria, no prazo máximo de dois meses. É um prazo ambicioso, mas que está ao nosso alcance, assim o governo e a Assembleia da República assumam a responsabilidade política de contribuir para este processo.
A notícia desta notificação deu imediatamente origem à repetição, em diversos órgãos de Comunicação Social, de um conjunto de afirmações, propaladas pela entidade de gestão dos direitos dos artistas em Portugal.
Com base em dados objetivamente errados, é desenvolvida uma narrativa segundo a qual os artistas estão "excluídos" de receberem receitas do mercado digital de música, com a inerente atribuição de "culpas" à indústria musical.
Esta entidade, vê na indústria da edição musical um gigante ameaçador e dominador, contra quem - qual Dom Quixote de pacotilha - resolveu empreender esta batalha. Acontece que, a indústria musical é tão ameaçadora para os artistas, como os moinhos de vento o eram para a personagem de Cervantes.
E para isto tem valido tudo. Até comparar o incomparável, como é o caso da tentativa de fazer equivaler o Mercado de streaming inglês com o português (sendo o primeiro 52 vezes maior, em valor, que o segundo).
Porém é o próprio Relatório Final produzido pelo Parlamento britânico sobre a matéria, que contraria os "dados" amplamente propalados.
Não é sério afirmar que as editoras ficam com uma parte das receitas das plataformas, sem clarificar que é desse valor que estas pagam as remunerações (royalties) devidas aos artistas.
Feitas as contas, a conclusão é que no Reino Unido, um artista recebe, do respetivo produtor, um valor médio de cerca de 16% da receita total de streaming, percentagem maior que aquela que tipicamente recebia pelas vendas "físicas". Aos autores caberá um valor líquido aproximado de 10,5% do total das receitas.
A edição musical é um investimento de risco e, cada vez mais, um negócio de "escala". Assim, mesmo num mercado como o inglês, em média, o resultado bruto de um produtor é inferior ao valor pago por estes aos artistas.
E, se tal é verdade num mercado como o inglês, assim é, por maioria de razão, no mercado nacional.
Ao contrário do que se pretende fazer crer, nunca o mercado da edição musical foi tão competitivo. A distribuição digital de música permitiu, mesmo em Portugal, não só o surgimento de dezenas de novas editoras musicais, como também de projetos artísticos de autoedição. Neste último caso, o artista-produtor pode, de acordo com os mesmos dados, aspirar a receber 55% do valor total gerado pelo streaming. Porém, nesta hipótese, será ele a suportar os custos com a gravação, marketing e promoção.
E, se esta narrativa falha redondamente nos pressupostos em que assenta, a "solução" preconizada para inverter o quadro artificialmente pintado de negro, não é melhor.
O que resulta cristalino da proposta apresentada pela entidade de gestão de direitos dos artistas é que esta pretende ser, ela própria, a gestora dos seus direitos digitais, independentemente de estes a terem ou não mandatado para tal.
Afinal o objetivo de tanto ruído é combater um alegado e inexistente oligopólio com a atribuição, ou a promoção, de um monopólio legal a favor de quem assim argumenta. Se, por absurdo, tal proposta pudesse vir a avançar, os artistas - portugueses e estrangeiros - ficariam privados de liberdade de escolha.
Tal aventureirismo não tem respaldo no texto da diretiva, constituindo mesmo uma grosseira violação dos seus objetivos, normas e princípios. Mas, pior: teria consequências catastróficas para todo o ecossistema da indústria musical nacional, incluindo para os artistas.
Se imperar o mínimo de bom senso, a diretiva será transposta no prazo agora concedido e sem recriações perniciosas, que só contribuíram para isolar mais Portugal do mercado global onde agora compete.
Diretor-Geral da AUDIOGEST