Memórias do rio Danúbio através das margens da Europa

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Por vezes, há filmes capazes de nos fazer sentir que a história do presente, de cada um dos seus instantes, transporta memórias ancestrais que nos são íntimas, mesmo que não as sintamos como tal. The Ister (Culturgest, Pequeno Auditório, 11h00, Histórias da Europa) é um desses filmes, dos mais cristalinos e prodigiosos que vi em tempos recentes.

O título The Ister provém de "Istros", nome que os antigos gregos davam às zonas do rio Danúbio que hoje pertencem à Roménia e à Bulgária. Foi esse título que o poeta Friedrich Hölderlin (1770-1843) adoptou para um dos seus Hinos. Em 1942, num curso que deu em Freiburg, o filósofo Martin Heidegger (1889-1976) elegeu tal poema como matéria central do seu estudo e, em particular, como pretexto de algumas "pausas para reflexão". The Ister é um filme australiano de 189 minutos através do qual os realizadores David Barison e Daniel Ross se propõem reencontrar os temas de Hölderlin através das hipóteses de leitura de Heidegger.

O menos que se pode dizer é que estamos perante uma obra monumental que desafia qualquer critério de classificação. Num plano meramente descritivo, poderemos dizer que The Ister combina a viagem pelas margens do Danúbio, até à nascente na Floresta Negra, com intervenções de quatro personalidades três filósofos e ensaístas, Bernard Stiegler, Jean-Luc Nancy e Philippe Lacoue-Labarthe, e um cineasta, Hans-Jürgen Syberberg (autor do incontornável Hitler Um Filme da Alemanha, de 1977).

Em todo o caso, estamos longe de qualquer lógica "descritiva". Barison e Ross utilizam as palavras dos entrevistados, não como mero testemunho, antes como instrumento vivo do seu próprio trabalho de montagem e especulação filosófica. Basta reparar na subtileza das relações que se vão estabelecendo entre as palavras ditas e as imagens e os sons recolhidos ao longo do Danúbio. Muito para além de qualquer vício turístico, The Ister vai mostrando como os lugares da geografia se tecem sempre de memórias em que história e mitologia se enredam num jogo alternado de cumplicidades e resistências.

Talvez possamos definir The Ister como um retrato simbólico de uma Europa que se redescobre, literalmente, nas suas margens. Da evocação da herança grega às convulsões decorrentes das novas tecnologias e respectivos mercados, revisitamos um continente à procura do seu sentido interior e, nessa medida, da sua vocação universal. Nesse sentido, este Danúbio é o rio de todos nós.

ESPANHA. Também hoje, no Grande Auditório (21.00, Competição), passa El Cielo Gira, da espanhola Mercedes Álvarez, rodado na aldeia onde foi a última pessoa a nascer, e já só vivem 14 velhotes. Álvarez filma as estações que passam sobre a derradeira geração a habitar a aldeia, e fá-lo sem pressas, alinhando imagens belíssimas.

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