Memórias de Solferino
Deus é contra a guerra, mas geralmente está do lado de quem atira melhor. A quem serve e como parar a escalada deste conflito na Terra Santa, que separa corações de meio mundo e onde se discute o futuro de um povo sem terra ou de uma terra sem povo? E como travar, em ambas as partes da guerra, as violações flagrantes do Direito Internacional Humanitário, que já se converteram em rotina diária? Vejamos.
Testemunha ocular de uma das mais sangrentas batalhas contadas, o suíço Jean-Henri Dunant recebeu do nosso D. Carlos a Ordem de Cristo e, quatro anos depois (1901), foi o primeiro galardoado com o Prémio Nobel da Paz. É dele a descrição do cenário apocalíptico dos horrores e da carnificina que presenciou em Solferino, a batalha decisiva que opôs os Exércitos austríaco e franco-piemontês, na segunda guerra da independência italiana.
Foi tal o sofrimento que presenciou, com milhares de estropiados e mortos à bala e à baioneta, que organizou um serviço de primeiros socorros e, com base na sua experiência, publicou Memórias de Solferino, relato inquietante onde assinalava a falta de auxílio médico no campo de batalha e propunha a criação de uma organização internacional dedicada ao socorro das vítimas da guerra. Assim nascia a Cruz Vermelha, e mais tarde o Crescente Vermelho, cujas bases inspiraram as Conferências de Paz de Haia, em 1899 e 1907, que codificaram as leis e costumes da guerra. Mais tarde, e duas guerras mundiais depois, as Convenções de Genebra de 1949 e os Protocolos Adicionais de 1977 construíram o que hoje é chamado de Direito Internacional Humanitário ou Direito dos Conflitos Armados, cujas regras, que convém conhecer, procuram o equilíbrio entre os requisitos militares e as necessidades humanitárias à luz de dois princípios básicos: o princípio que obriga à distinção entre civis e combatentes; e o princípio da proporcionalidade.
Ora, o ataque indiscriminado a jovens que participavam num festival de música no sul de Israel não faz distinção entre civis e combatentes, nem é proporcional à vantagem militar que se pretende obter. Como o não é a decisão de cortar a água, o gás e a eletricidade a toda uma população civil submetida a bombardeamento diário. E nem a decisão de negar à população o acesso à alimentação e aos serviços de Saúde. Além de que, privar a população civil de ajuda e colocar em risco o acesso de socorro humanitário às zonas de conflito é instrumentalizá-los e violar outros princípios fundadores das normas humanitárias, como os da imparcialidade, neutralidade e humanidade. A ajuda humanitária não é nem uma arma de guerra, nem um meio de negociação política, e facilitar o seu acesso é um dever, uma obrigação. É o que estatui o Artigo 23.º da Quarta Convenção de Genebra: cada parte em conflito "autorizará a livre passagem de todos os envios de suprimentos alimentares, medicamentos e material sanitário (...) destinados exclusivamente à população civil de outra parte, ainda que seja inimiga".
Qualquer violação destas regras universalmente reconhecidas deve ser denunciada como crime de guerra. E a esta luz, tão ilegítima é a resposta do Hamas a décadas de ocupação, como a resposta de Israel ao ataque terrorista. Mas a guerra é rica em atrocidades e pobre em certezas. É por isso que existe a propaganda, uma máquina de produzir certezas que indicam o que devemos ignorar. Resistir à propaganda significa renunciar à certeza. E olhando a partir do sofá, mesmo que saturados de dor e de morte, não podemos deixar de olhar, porque a indiferença engorda as tragédias. Na Terra Santa, só os mortos conhecem o fim da guerra, tão remotas são as escolhas para acabar com ela. Mas tem de haver alternativas à permanente violação do Direito Internacional Humanitário. Estamos com Guterres: Ao menos um cessar-fogo.
Jornalista