Memórias de Lisboa depravada e não só de Raul Brandão

Três Volumes Reunidos de memórias de Raul Brandão permitem reconstruir como era Portugal há cem anos. Muito pouco mudou...
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O registo memorialista tem em Raul Brandão um dos melhores exemplos desse género literário a nível nacional. Por isso, este Três Volumes Reunidos de Memórias oferece muitas e boas horas de leitura e descoberta de factos, opiniões, juízos e pensamentos sobre o início do século passado que são memoráveis.

É impossível ler estas Memórias sem, ter em conta que Raul Brandão é o autor de Húmus, um romance sempre considerado como dos melhores exemplos da literatura portuguesa desde o tempo em que o país se formou e até hoje, que constantemente permanece na lista dos melhor 30 títulos.

O linguajar de Brandão é nestas memórias é fluido, sincopado e, porque não, atual. Pode ser lido tendo como cenário aqueles tempos, mas serve também de termo de comparação com a contemporaneidade. Não é que isso interesse, mas sim que existem nestas seiscentas páginas várias pérolas deliciosas que tanto questionam como divertem e fazem pensar.

Vamos a alguns exemplos...

Questionar: "Mas [Guerra] Junqueiro, como sempre, sintetiza muito melhor a situação nestas palavras: - Já hoje, se fosse possível fazer um plebiscito ao país, não com papéis, mas dentro da consciência de cada um, na escuridão do seu quarto, a maioria monárquica era esmagadora. Havia menos republicanos do que antes do 5 de outubro."

Diversão: "No outro dia - diz o Freitas - estive com a rainha D. Amélia. Está uma mulher amarela e feia, enorme, com as mãos do tamanho do Maximiliano de Azevedo. E, como lhe notasse os dedos cheios de joias, estranhei, perguntei e explicaram-me: - São os anéis de brilhantes que ela arrancou aos cadáveres do marido e do filho - e que traz sempre consigo."

Pensar: "As culpadas são as classes chamadas superiores. Lisboa foi sempre uma terra depravada, mas nunca como agora. Atualmente é uma cloaca. (...) Muitos deputados são empregados em companhias. Alguns mesmos só se fazem eleger para defenderem interesses."

Três exemplos entre infindáveis casos que Brandão aqui expõe, retratando o pântano de então de forma demasiado igual ao dos dias que correm. Mesmo que fora da espuma dos dias se encontrem neste volume episódios abundantes de retratos de figuras que bem conhecemos posteriormente. É o caso de Eça de Queiroz e de como em janeiro de 1926 o escritor surge ao olhar de Brandão: "Na Correspondência aparece-nos outro Eça. Deixou cair o monóculo." Ou sobre Columbano: "Quase todos os pintores o detestam: - Pinta feio. Pinta escuro."

A atualidade não lhe escapa. A Grande Guerra, de cuja partida dos soldados para a frente de batalha é dos seus dias: "Seria realmente o Bernardino (Machado) que teimou que fôssemos para o front, mas quem lhe matou o bicho do ouvido foi o João Chagas, a ponto de se dizer, em Lisboa, que recebia uma libra por cada soldado que partia para França." Sobre Sidónio: "Chegou hoje do norte. Teve uma manifestação imponente, como nunca vi fazer a reis."

Uma frase que resume todo o volume de memórias está na p. 501, de que "a verdade anda sempre escondida. Só o papel da mentira é temeroso no mundo." O leitor que tenha paciência para ler estas páginas pode entender para que serve este trio com o exaustivo recordar dos anos que foram o deste nosso antepassado e pensar na frase do Fukuyama, que afirmava que a História tinha acabado em certa data. E não será difícil acreditar que o último tem razão.

Memórias

Raul Brandão

Editora Quetzal

624 páginas

PVP: 19,90 euros

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