Quando o irmão Tom lhe pediu para escrever sobre aquela noite de 1991, a primeira resposta de Jeanine Cummins foi não. "De início não queria. Nós temos uma família grande, não queria ser a sua voz. E não queria mergulhar nos pormenores daquela noite. Eu tinha 16 anos. Estava bastante feliz por não saber os pormenores", contou-me Cummins em abril passado, quando a entrevistei na FLAD a propósito do seu último romance, Terra Americana. "Aquela noite", a de 4 de abril de 1991, foi a noite em que as primas de Jeanine, Julie e Robin Kerry, foram mortas por quatro adolescentes, atiradas de uma ponte no Missouri, depois de terem sido violadas. O seu irmão Tom sobreviveu depois de ter sido obrigado a saltar para o rio..Apesar das reticências iniciais, Jeanine acabou mesmo por aceder ao pedido de Tom e escrever sobre o crime. O resultado foi o seu livro A Rip in Heaven, editado nos Estados Unidos em 2004 mas que só agora chega a Portugal, com o título Um Golpe no Céu (edições ASA). Nele, a autora dá uma visão dos acontecimentos que levaram à morte de Julie e Robin, então com 20 e 19 anos, que, logo numa nota inicial, explica ser fruto de "documentos judiciais, arquivos da polícia e meios de comunicação eletrónicos e impressos, bem como de entrevistas que fiz com pessoas que aparecem neste livro". Mas também, "porque faço parte da história, usei as minhas memórias pessoais de certos acontecimentos". E é assim que Tink, a alcunha de Jeanine desde criança, surge como uma das personagens da história..Neste caso, desvendar um pouco do enredo não implica nenhum spoiler - afinal o crime da velha ponte de Chain of Rocks foi notícia em todos os media americanos. Naquela noite de abril de 1991, Tom decide esgueirar-se da garagem de casa dos avós, em St. Louis, Missouri, onde estava a passar férias com os pais e as duas irmãs, Tink e Kathy, para uma escapadela noturna com as primas Julie, de quem ficara muito próximo no verão anterior, e Robin. O trio decide ir até à velha ponte sobre o rio Mississípi, que, desativada, se tornara local de atração para graffiti, para verem o poema que Julie ali escrevera no chão. Ali, no escuro, a meio da noite, são surpreendidos pela chegada de quatro outros jovens - Marlin Gray, Antonio Richardson, Reginald Clemons e Daniel Winfrey. Ao início a interação é amigável, mas num certo momento, já depois de terem deixado os três primos no tabuleiro da ponte, os jovens decidem regressar - com as piores das intenções. Ameaçando Tom e mantendo-o imobilizado, violam Julie e Robin à vez, antes de colocarem as jovens num pilar da ponte, de onde as lançam ao rio. Ameaçado, Tom é forçado a saltar para a corrente lá em baixo. O rapaz consegue nadar até à margem, mas as duas raparigas acabam por morrer, com o corpo de Julie a aparecer umas semanas depois, mas o de Robin a nunca aparecer..Muito mais do que um policial, o livro de Jeanine Cummins é uma perspetiva íntima sobre os dias, semanas, meses e até anos que se seguiram ao crime. Um olhar sobre uma família devastada pela perda de duas jovens promissoras e a luta de um jovem que depressa passa de vítima acarinhada pela polícia a principal suspeito, com a sua cara e o seu nome vilipendiados em todos os noticiários. O desespero de Tom, que se vê numa cela ainda coberto de lama do rio, com uma anca partida e o cabelo emaranhado de ramos, a sofrer com a perda das primas amadas e sabendo que os quatro assassinos estavam lá fora à solta enquanto ele arriscava uma eventual pena de morte por um crime que não cometeu, envolve o leitor e deixa-o agarrado às páginas, mesmo já sabendo o desfecho final..Na nossa conversa na FLAD, Jeanine Cummins focou-se mais no recente choque face às críticas de quem a acusou de apropriação cultural por contar a história de imigrantes ilegais vindos do México para os EUA em Terra Americana. A autora lamentou a falta de vontade política para resolver a questão da imigração, falando das suas raízes porto-riquenhas e irlandesas. Mas não escondeu a emoção ao recordar o que a levou a escrever Um Golpe no Céu. "Acabei por ser convencida pelo meu irmão. Achei que ele tinha o direito de contar a sua história. E que, tendo eu capacidade para o ajudar, não lhe podia negar isso. Também senti que era a coisa certa a fazer pelas minhas primas, que lhes podia devolver algo das suas vidas, mesmo que fosse só uma ínfima parte de quem elas eram."