Memória de Estrasburgo
Nós passamos fugidiamente pelas cidades, mas nunca ficamos incólumes. Alguma coisa as cidades vividas transformam em nós. Alguma coisa que voltará repetidamente nos nossos sonhos, que julgaremos surpreender numa volta do caminho, alguma coisa que nunca nos deixará.
No que me toca, Estrasburgo foi uma cidade assim, simples no viver, profunda e difusa no recordar. Eu morei lá em duas casas: a primeira ficava no meio de um campo de milho e o crescimento das espigas vinha marcar-nos as estações; a segunda era uma residência oficial e o meu secretário de Estado preferido, que tinha criado uma tabela em metros quadrados para limitar as áreas das residências dos embaixadores, queria por força tirar-me de lá. Em qualquer das duas casas, a paz burguesa daquela cidade dilacerada por tantas guerras trazia o conforto do seu viver habitual e sem mais sonhos de grandeza à nossa felicidade.
Os meus filhos mais novos, então na "maternelle", visitavam e eram visitados periodicamente por uma turma de meninos da mesma idade, da outra banda do Reno. Tratava-se de construir a paz e, para usar uma distinção recente do Papa Francisco, completar a "arquitetura da paz" que os estados e autoridades estabelecem e promovem (ou não) com o "artesanato da paz", que é feito por todos e cada um dos cidadãos na relação com os cidadãos dos outros países. Um dos meus filhos (hoje diplomata em Bruxelas) veio contar-me um dia, com ar surpreendido e incrédulo, "pai, sabias que houve uma guerra entre a França e a Alemanha?". Como se tal coisa fosse um absurdo...
Toda a cidade de Estrasburgo, com os seus monumentos franceses e os seus edifícios alemães, com o francês falado nas cidades e o alsaciano resiliente nas aldeias, nos fala da guerra e da paz, nos lembra as ilusões e as armadilhas dos nacionalismos. Uma cidade que foi alemã entre 1870 e 1919, francesa entre as duas guerras, depois alemã até 1945, guarda das lutas que dilaceraram a Europa no século XX uma memória que atinge e fere a sua própria identidade. O conforto burguês que se seguiu nos últimos anos tornou-se assim um refúgio para os cidadãos.
Esta cidade, bem no eixo do diferendo europeu, foi considerada ideal no pós guerra para capital da Europa e assim, no longínquo início das organizações europeias, ali se veio estabelecer o Conselho da Europa, baluarte na defesa dos direitos humanos. O processo posterior que levou à construção da União Europeia teria, porém, deixado Estrasburgo à margem, não fora a teimosia francesa em manter ali uma segunda sede do Parlamento Europeu. Entrou assim esta cidade na lista das capitais europeias, um satélite de Bruxelas como o seu parceiro Luxemburgo, contra os protestos dos eurodeputados, obrigados a mudar todos os meses por uma semana o seu local de trabalho.
Vivi muitos anos felizes em Estrasburgo e, se seguisse a máxima de Tolstoi, teria que admitir que esses anos não tiveram história. Foram, contudo, atravessados pela História com H grande, em todo o seu ruído e furor. Na minha primeira estadia, nos anos 90 do século passado, explodiu a Jugoslávia em raiva e em sangue. E mais perto de nós, em 2014, começou a Rússia o seu processo de tentativa de recuperação daquilo a que chamava o seu "estrangeiro próximo": primeiro na Geórgia, depois na Ucrânia, o fim do Império Russo trazia consigo as convulsões que todos os finais dos impérios trouxeram consigo. O embaixador da Rússia, um homem inteligente e delicado, cristão que se benzia todos os dias em frente dos seus ícones, disse-me um dia: "Como compreenderá, poucas figuras históricas me dão tanto asco como Lenine; no entanto, não posso aceitar que os estados nossos vizinhos derrubem as estátuas de Lenine que lhes deixámos". O "estrangeiro próximo" nunca poderia ser estrangeiro para a Rússia.
A Estrasburgo burguesa que tenta esquecer a História é a mesma Estrasburgo onde vem ressoar, sem margem para contemplações, o som cruel e sem disfarces da crueldade do mundo. Foi assim que vivemos lá felizes por todos aqueles anos que nos anunciavam a catástrofe iminente.
Diplomata e escritor