Memória da escrita feminina num ano de abundância
Cada ano que passa só faz aumentar a intensidade do prazer que os livros despertam num desfolhar que vai marcando os nossos dias, incendiando-os com a paixão da leitura. Contaminando-nos com as suas histórias, o que me acontece muitas vezes com a escrita das mulheres excesso e multiplicidade, dividida entre a razão e a interioridade, a sensibilidade e a ferocidade, o gelo implacável e a ardência.
De entre os tantos romances, contos, novelas e ensaios editados neste ano em que uma mulher, Elfriede Jelinek, ganhou o Nobel da Literatura, destaco seis obras Erzsébet Báthory - A Condessa Sanguinária, romance de culto de Valentine Penrose. Espantoso trabalho de linguagem, de uma envolvente criatividade avassaladora. Assombrações, de Vernon Lee, menos esplendoroso mas com uma turva e angustiante beleza. Imperatriz, de Shan Sa, a busca das fundações femininas através da eternidade. Diário Íntimo, de George Sand, testemunho já dessa eternidade pela intimidade da palavra. Tóquio, de Mo Hayder, um consistente e irrecusável romance dos nossos dias. A Máquina Do Amor Sagrado e Profano, de Iris Murdoch, o pensamento filosófico posto ao serviço da arte narrativa.
Mas, mais livros houve em 2004, que amei, e de entre os quais destaco o novo romance de Nélida Piñon, Vozes do Deserto (Círculo de Leitores), homenagem à literatura através da voz de Xerazade. Cartas de Um Sedutor e A Obscena Senhora D., de Hilda Hilst, testemunho da ousadia, da ruptura provocatória que foi marca de toda a sua escrita. O Livro da Felicidade, de Nina Berberova (Âmbar), a delicadeza e a serenidade intranquila. Gostaria ainda de sublinhar a reedição da obra de Pearl S. Buck, levada a cabo por Livros do Brasil. Uma importante romancista que entre nós tem andado injustamente esquecida. Chamo também a atenção para as reedições do emblemático Mrs Dalloway, de Virginia Woolf (Relógio d'Água), dos clássicos Jane Eyre, de Charlotte Bronte (Difel), A Abadia de Northanger, de Jane Austen (Europa-América), e ainda A Pianista, de Elfriede Jelinek (Asa).
Muitas outras escritoras merecem ainda ser mencionadas. Tal como as americanas Erica Jong com Os Amores de Safo (Bertrand), seguindo o rasto da mítica poetisa Safo. Rebecca Miller com Velocidade Pessoal (Relógio D'Água), um invulgar volume de contos em torno da solidão feminina, e Tracy Chevalier com Quando os Anjos Caem (Temas e Debates), a amizade e o despertar da sexualidade feminina. A cubana Ena Lucía Portela com Cem Garrafas Numa Parede (Âmbar), na abordagem de Cuba dos nossos dias. A francesa Camille Laurens com O Amor, Romance (Dom Quixote), engenhoso e desconcertante. Laura Restrepo com A Noiva Obscura (Presença), matizando a ficção com a realidade. A espanhola Rosa Montero com A Louca da Casa (Asa), um livro que faz a diferença, numa mistura de ansaio, ficção, autobiografia e jornalismo.
Injusto, no entanto, seria esquecer Isabel Allende e O Bosque dos Pigmeus (Difel), último volume da sua trilogia. Elena Ferranti e Os Dias do Abandono (Dom Quixote), sobre o sentimento da perda amorosa. Juliet Marillier e Máscara de Raposa (Bertrand), o último volume da Saga das Ilhas Brilhantes. Patricia Cornwell e A Ilha do s Cães e Mergulho no Passado, (Presença e Gótica). Chantal Thomas e O Adeus à Rainha (Teorema), os derradeiros dias em Versalhes de Maria Antonieta. E chegada a este ponto, limite do espaço de que disponho, dou-me conta de quantas autoras e seus livros vou ter de deixar para trás. Esperando, apesar de tudo, não ter cometido nenhuma especial injustiça .