Melro-preto

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E assim, sem anúncio, tornaram a cantar os melros-pretos. Apareceram pela manhã, com os seus tchink-tchink-tchink e tchouk-tchouk-tchouk, e, ao passar um queimado, um deles ergueu o bico: sriiii.

Gosto de melros-pretos. Às vezes sinto-me mesmo bastante próximo deles. Vejo-os nos seus rituais de acasalamento, o macho numas corridas oblíquas e tontas, que interrompe com vénias engasgadas, e reconheço as minhas melhores técnicas de sedução dos tempos do liceu.

Dos tempos do liceu e, bom, da vida toda.

Temos a nossa própria subespécie, aqui nos Açores. Os machos apresentam uma plumagem preta e resplandecente, enquanto as fêmeas não têm mais do que umas penugens macilentas, fuliginosas. Chamemos-lhe justiça poética.

Os antigos diziam que o melro--preto dorme com um olho fechado e o outro aberto. Conheciam o mundo que os rodeava. Na verdade, o melro-preto é dotado do dito sono de ondas lentas uni-hemisférico, que lhe permite adormecer metade do cérebro e manter a outra metade numa actividade de baixa voltagem, em alerta.

São malandros, os melros-pretos. Socialmente monogâmicos, mas geneticamente poligâmicos, divorciam-se em 20% dos casos. Ainda assim, menos do que nós.

O melro-preto foi exaltado na poesia de R. S. Thomas, Edward Thomas, Guerra Junqueiro. Em Blackbird, os Beatles cantavam: "Blackbird singing in the dead of night/Take these broken wings and learn to fly."

Pessoalmente, ouço a palavra blackbird e só me ocorre Marion Cotillard lacrimejando coitadinha, quando o polícia lhe traz o recado de Johnny Depp: "Bye bye, blackbird." Será tentação do Diabo. Também foi com um melro--preto que o Mafarrico encheu São Bento de desejos impuros.

Devorado pelo remorso, ele atirou-se nu para um arbusto espinhoso. Quando penso em Marion, fico contente por ser ateu.

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