Melancolia de fim de férias

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Somos crianças feitas
para grandes férias.
Ruy Belo

O tempo ameaça chuva, as noites estão frias e húmidas, sabemos entender estes sinais que nos mandam dizer adeus às férias.

A melancolia desta época atravessa todas as conjunturas da nossa vida, independentemente do que nos espera ao regressar à vida normal. Nunca me custou propriamente voltar ao posto no estrangeiro ou ao gabinete em Lisboa que me esperava, pois no tempo em que eu estava em funções sentia no início do ano letivo (sempre contei os anos em anos letivos) aquele mesmo entusiasmo pela novidade que na escola me fazia cobiçar em cada regresso às aulas os novos livros de estudo. Podia agora na volta encontrar dificuldades e incompreensões, atritos e vexames, intrigas e derrotas: apesar de tudo isso, que é o fardo de qualquer ser humano em sociedade, não perdi nunca o entusiasmo por esta ideia de recomeçar, de poder encontrar o novo (le vierge, le vivace et le bel aujourd"hui, Mallarmé) nas tarefas e encontros de cada dia do ano de trabalho que começava.

Confessar que gosto da minha profissão, agora que estou na disponibilidade, parecerá estranho a todos os que se queixam, com razão, das condições do seu trabalho. Não posso negar que se vem juntar a esta melancolia do fim das férias a saudade do tempo em que às férias se seguia a viagem, mais ou menos longa, para o posto, fosse Paris ou Nova Deli. Agora regresso a casa em Lisboa e preparo-me para alguns compromissos assumidos para este trimestre. Tenho de admitir que já não espero o novo com aquele entusiasmo com que abria os livros escolares no princípio de cada ano. Envelhecer é sempre reduzir expectativa e a resistência ao envelhecimento está numa programação ativa das nossas capacidades e possibilidades, que possa manter vivas as nossas esperanças.

A melancolia do fim de férias é a tradução da angústia da irreversibilidade do tempo que passa. Para quem há quase quarenta anos vem para a mesma praia, há uma ilusão anual de negação do tempo, onde todos os tempos são um só e vivem e revivem no mesmo momento. A criança que levamos pela mão já não é a filha, é agora a neta, mas o caminho é o mesmo e toda a realidade que nos cerca grita que somos eternos.

Não somos. Mas ao desfazer-se no fim das férias esta ilusão de eternidade assalta-nos a melancolia de voltar a um tempo medido e cronometrado, que mais nos aproxima do nosso fim.

Também nos persegue um resto de culpabilidade, porque embora as férias devessem ser a libertação de todas as nossas obrigações, a verdade é que tudo o que projetei escrever e não escrevi, todos os livros que trouxe para ler e não li, me pesam na consciência. A melancolia do que não fizemos nas férias tenta então sobrepor-se a todas as grandes e banais memórias de alegria de que estes dias foram feitos e que vieram conferir a estas férias a sua promessa implícita de felicidade.

Os que amam a Beleza/ não têm bem-estar nem família, proclamava Mário de Sá Carneiro.

Talvez a Beleza e a Poesia tenham fugido de mim, ao ver-me no meio deste reencontro familiar, que cada ano se repete, numa ilusória denegação da finitude. Ou talvez a preguiça, que cresce com a idade, tenha acreditado assentar de vez arraiais. O custo da separação (uns para Viena, outros para Paris e Bruxelas, dos quatro só uma filha em Portugal) virá dar alimento novo à melancolia. A solidão da escrita irá medir forças com a sedução da preguiça. E assim continuamos e continuaremos.

Diplomata e escritor

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