Mel Gibson, esse cineasta com adrenalina violenta

Em <em>O Herói de Hacksaw Ridge</em>, Mel Gibson filma o pacifismo com violência extrema. O LEFFEST abre hoje com o cinema de um cineasta eventualmente sádico
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Na tradição dos cineastas raros de Hollywood está Mel Gibson. Já faz filmes desde os anos 90 mas antes deste O Herói de Hacksaw Ridge só tinha dirigido quatro. Um realizador de corpo inteiro que só filma quando tem projetos que o deixam obcecado. Um realizador que também não gera consensos, sobretudo na última fase.

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A verdade é que é injusto pensar nele como apenas um dos muitos atores que faz filmes de vez em quando. Goste-se ou não, é uma obra com uma marca própria, com um verdadeiro olhar de cinema. Talvez pudesse ser mais consistente se não tivesse que alimentar a carreira principal, a de ator. Aos 60 anos continua a ter o peso de estrela de cinema (obviamente já sem salário de topo) e não é por acaso que daqui a umas semanas estreia-se Blood Father- O Protetor, de Jean-François Richet, uma obra de ação pura onde Gibson volta aos papéis de duro.

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Importa também distinguir dois momentos na sua carreira: a fase Braveheart- O Desafio do Guerreiro (1995) e os dois filmes que vieram a seguir, A Paixão de Cristo (2004) e Apocalypto (2006). Uma primeira fase com um olhar mais clássico e com pendor romântico apócrifo e uma segunda onde se insere um gosto vincado nas marcas da violência gráfica, aliás um dos temas deste seu novo trabalho.

A aventura atrás das câmaras começou de forma magnífica mas pouco notada. Foi em 1993 com O Homem sem Rosto, um melodrama sem ambição de literatura mas com um justeza emocional notável. Infelizmente, foi um filme que na altura não teve um lançamento grande nos EUA. Se na altura Mel era o Mad Mel dos filmes da série Arma Mortífera e talvez o ator mais popular nos EUA, o efeito intimista desta história de amizade entre um menino e um homem com o rosto desfigurado (Mel Gibson, precisamente...) terá desconcertado o mercado americano (por consequência, em Portugal o filme teve também uma estreia limitadíssima), sobretudo porque havia uma estrela com o rosto coberto por cicatrizes não muito agradáveis à vista. Independentemente de tudo isso, é um belo mergulho no mundo da infância, feito sem grandes alaridos mas com os sentimentos do lado certo. Era uma excelente estreia na cadeira de realizador e tinha um mérito admirável: conseguia arrancar a si próprio uma das suas melhores interpretações.

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Na etapa seguinte, jogava com as fichas todas e assinava um épico desmedido: a história de um dos heróis da História da Escócia, William Wallace. Braveheart foi apoiado por um grande estúdio de Hollywood, a Fox e conseguiu um efeito consensual. Três horas de puro entretenimento filmadas com uma simplicidade e raça raramente vistas. O filme agradava a crítica americana e chamava muitos espetadores. Tudo corria bem a Gibson que conseguia na sequência do discurso de motivação de guerreiros um momento inesquecível, hoje em dia com carga já icónica.

Sem surpresas, chegou aos Óscares - venceu cinco e ele próprio levava para casa dois, o de realização e o de melhor filme, já que era também o produtor. A partir daqui ganhou um imenso poder. Poder para fazer de forma ainda mais independente o filme seguinte, nove anos depois. Chamava-se A Paixão de Cristo e era o eu projeto mais pessoal de sempre: filmar a agonia de Cristo. O mais fervoroso católico de Hollywood criou um filme "acontecimento". Uma tese com sangue, suor e ainda mais sangue sobre o sofrimento de Jesus. Para Gibson o importante era sobressaltar o espetador. Por um lado, era um filme bíblico sem o academismo que estávamos habituados, por outro levantou dúvidas sobre os limites daquilo que se deve ou pode mostrar. Foram muitos os que protestaram com a violência gráfica desta abordagem. Às duas por três, o tal suposto sadismo alavancou o burburinho em torno da obra.

Filmado com uma mestria técnica que enche o olho, A Paixão de Cristo dividiu muitas opiniões. Tinha de o fazer, mas tanta polémica gerou uma vida comercial longa e profícua. 370 milhões de dólares terá sido o valor total que faturou na América e é até à data o seu maior sucesso (em Portugal teve um impacto também tremendo, fazendo esgotar muitas salas). As últimas doze horas da vida de Jesus de Nazaré parece um filme de um fanático religioso mas tinha um rumo, enquanto que Apocalypto, feito quase logo a seguir, era apenas um filme de um fanático. Foi o seu grande tropeção. Uma visão abrutalhada sobre o declínio dos maias e os sacrifícios religiosos. Saltava à vista uma salivação por sangue desnecessária. Se a violência em A Paixão de Cristo poderia ser matéria intrínseca, aqui era apenas overdose. E cansava imenso. O público já não foi tanto na conversa e a crítica foi feroz. De alguma forma, o estado de graça de Mel acaba aqui.

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Para já, em Veneza, onde este novo filme teve a sua antestreia, a imprensa voltou a ficar dividida. Hoje passa em Lisboa (Cinema Medeia Monumental às 21.30) e no Casino Estoril, às 23.30.

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