Meia Lisboa saiu à rua em busca de brisa fagueira
Calor. No Verão de 1946, durante três dias o país inteiro registou temperaturas que, para a época, eram demasiado elevadas. E chegava a comparar-se a situação com o "clima das zonas tórridas do Equador".
"Ontem sim, parecia de morrer", noticiava o Diário de Notícias a 10 de Julho de 1946. "O lisboeta viveu com aflição este dia de calor tropical, que foi o mais quente do ano", com uma temperatura superior a 36 graus à sombra. E, "atormentado pelo calor, houve durante a noite quem dormisse nas ruas".
"O termómetro", explicava o jornalista, sem suspeitar que os dias seguintes ainda seriam piores, "sob a influência das massas de ar quente de África, subiu até 36º, 8 e registou o mínimo de 20º, 4. Para que se veja o que isto representa é suficiente lembrar que, em igual dia de há um ano, as temperaturas foram, respectivamente, de 23º, 5 e 16º, 6."
Naturalmente, "as esplanadas fizeram farto negócio e, à noite, meia Lisboa veio para a rua, em busca de uma brisa fagueira" - uma palavra que caiu em desuso. "Por esses bancos das avenidas e jardins não faltaram os que se deixaram adormecer. E nalguns bairros os moradores preferiram vir para a rua a ficar nas suas camas. Houve quem passasse a noite toda ao ar livre."
No dia seguinte, relatando os 39º, 5 da véspera, exagerava-se que "a temperatura de ontem pede comparações ao clima das zonas tórridas do Equador". Além disso, "o espectáculo das noites de Lisboa com gente que procura à beira rio, nos parques, jardins e esplanadas a frescura que não encontra nas suas casas, repete-se província fora". Da delegação do DN em Coimbra, a bater recordes de calor, escrevia-se que "os lisboetas que ontem, com 36º à sombra haviam suado as estupinhas, não fazem ideia do que sejam 40º, 8 - à mesma sombra".
Nada a fazer. No dia imediato a primeira página do jornal informava que "o calor continua sufocante". Lisboa, com 39º, 6, "almoçou, jantou e ceou... refrescos". E em Coimbra, com 42º, 4, "a manter[-se] tal ritmo, os termómetros (...) não tardarão, positivamente, em rebentar com a escala - como se diz, na pitoresca gíria académica, em relação aos ursos [os melhores alunos]." Naquela cidade, com cervejarias e cafés "à cunha", "esgotou-se a cerveja, esgotaram-se os refrescos e os homens dos esquimós andaram numa roda viva entre as fábricas e os locais à sombra - esquinas, debaixo das árvores, jardins, etc - onde instalavam o negócio. E esgotaram-se nas mercearias da Rua da Louça - os chapéus e os abanos de palha!" Em Évora (41º, 5) uma rua "foi invadida por nuvens de mosquitos que, assanhados, incomodavam toda a gente".
E o toque caricato. "No comboio correio (...) incendiou-se, no caminho do Entroncamento, por duas vezes, uma carruagem de 1ª [classe]. Teve de ser utilizado o extintor, que seguia no furgão. Os passageiros, sofrendo susto, continuaram viagem, sem mais novidade, mas sem, alguns deles decerto, deixarem de fumar e de atirar a ponta do cigarro para o pavimento da carruagem. Porque, por combustão espontânea, à razão só do calor, parece-nos... incêndio estranho." Pois! |