Mega jantar em Wuhan? 5 milhões de saída? A China e o coronavírus

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Impossível. Este título é falso. Ou talvez não. Recuemos um pouco.

No final de Dezembro o coronavírus começou a ser notícia por todo o mundo. Uma nova doença respiratória voltava a surgir (supostamente a 1 de Dezembro) em Wuhan, cidade onde tinha aparecido o "SARS" em 2002. Centenas de milhões de vacinas foram produzidas na época para evitar uma catástrofe de saúde pública global.

O que fez o Estado chinês desde as primeiras notícias científicas sobre o coronavírus, em Dezembro de 2019? Mandou calar o médico (Li Wenliang) que levantou a hipótese de estarmos perante um novo surto pneumológico letal.

Mandar calar é o dia-a-dia da vida da política chinesa. O regime assenta na censura, repressão e esmagamento pela hierarquia. Quem ousa dar más notícias? O terror gera então o encobrimento como método.

Foi exatamente o que se passou com o coronavírus.

Eis um caso exemplar do que se seguiu. A 18 de Janeiro, já lá iam seis semanas depois dos primeiros contágios em Wuhan, a cidade mantinha-se sem medidas de prevenção. De tal forma que em Baibuting, uma das áreas residenciais de Wuhan, preparava-se o 20º jantar das festas da cidade, com milhares de mesas espalhadas pelas ruas, desta vez com um extra: ia ser batido o recorde mundial de refeições servidas num só evento.

Sem qualquer gestão de crise instalada, o jantar popular realizou-se. Terão participado 40 mil famílias na mais absurda ignorância e irresponsabilidade pública.

Esta história, publicada pela Financial Times há dias, dá conta da absoluta incapacidade de Pequim em perceber o que se estava a passar na província de Hubei e, mais em concreto, no epicentro, a cidade de Wuhan.

Calcula-se que, por força das comemorações do ano novo chinês (ou para fugir da região) terão saído de Hubei por esses dias perto de cinco milhões de pessoas.

Só a 22 de janeiro as autoridades colocaram toda a província de Hubei em sequestro por força da intervenção da Organização Mundial de Saúde. Já cinco milhões tinham saído, expandindo brutalmente o risco por todo o país (e mundo).

A crise do coronavírus é apenas mais um exemplo das várias velocidades e formas de gerir crises na China: por um lado um extraordinário poder de ação do Estado central, quer científico ao mais alto nível, quer de propaganda e relações públicas.
Por outro lado, a China real: uma enorme incapacidade de agir e aprender, mesmo depois de tudo o que já havia sido visto em 2002.

Filipe Froes, pneumologista português ligado à OMS, perguntava ontem na SIC-Notícias coisas absolutamente lineares: "O que nos estão a esconder mais?". De um dia para o outro (ontem) surgem 15 mil novos casos e 242 mortos. "Será que o surto começou mesmo em Dezembro? A primeira morte foi mesmo a 9 de janeiro?", questionava Filipe Froes. "Será que tiveram medo que as auditorias da Organização Mundial da Saúde viessem a descobrir estes casos e tiveram de proceder a esta atualização?". E outro ponto: "Estes doentes foram devidamente tratados?". É que os casos graves fora da China, devidamente acompanhados, têm sido bem-sucedidos (apenas três óbitos no mundo inteiro), lembrou o pneumologista.

Voltemos a Wuhan. Quase 18 anos depois do SARS, a China não foi capaz de reforçar a salubridade dos mercados e fazer pedagogia em relação ao consumo humano de animais selvagens. Uma vez mais fica evidente quão arriscado (e absurdo) é lidar com animais selvagens e plantas exóticas em mercados. Consumi-los ainda mais.

Entretanto, quando as más notícias chegam, como divulgá-las, num país onde a política oficial é a dos amanhãs que cantam?

Estive duas vezes na China - em 2010 e 2013. Saí do país mais populoso do mundo com a convicção de que o regime se ia autodestruir por via da saúde pública. Há cidades em que é muito difícil respirar quotidianamente. Recordo-me de uma frase no Museu de Arquitetura, em Xangai. Algo assim: "O nosso objetivo é ver o azul do céu em 2030". Não era poesia. Era/é literal. Em Xangai, o manto de neblina (poluição) não sai de cima da cabeça de quem lá vive.

Nessa ocasião (Março 2013) li na imprensa internacional que 16 mil porcos foram encontrados mortos junto ao rio Huangpu - um dos que abastece de água para consumo em Xangai. O pânico face a uma doença suína levou vários produtores a desfazerem-se daqueles animais, tentando não deixar rasto, exatamente porque promover a morte de chineses por via alimentar é um crime capital no país.

Como se sabe, do ponto de vista ambiental, a China pratica as maiores atrocidades planetárias. O Estado desloca milhões de pessoas em função de grandes obras, destruindo habitats naturais e referências culturais das suas populações. Continua a construir dezenas de centrais a carvão. Mantém uma parte da sua indústria sem quaisquer cuidados ambientais. Tudo isto envolto numa política externa que pretende dizer o contrário, como é o caso da adesão ao Acordo de Paris.

Mas uma coisa é os chineses irem vivendo (mal), outra é viverem literalmente sem saúde, em degradação ambiental constante. E por isso Xi Jinping teve de sair do Palácio Imperial para aparecer em fotos tranquilizadoras para os media, observando com os seus próprios olhos o poderio científico da China face ao agora designado Covid-19.

Só que a questão ultrapassa em muito o coronavírus. Viver na China é uma das últimas coisas que um ser humano, com alternativas, deseje. E os chineses sabem disso. O PC chinês não passou a olhar para as causas ambientais por sobressalto cívico ou consciência planetária. É a única forma de se manter no poder e impedir a prazo uma revolta.

O balanço desta atual China é triste: ausência de democracia e liberdade; especialização em roubos de propriedade industrial/intelectual como fórmula para ultrapassar a concorrência; níveis de poluição inimagináveis; um país a cair no espectro do envelhecimento com o consequente abrandamento económico; e uma degradação de saúde pública de que o coronavírus é apenas mais um epifenómeno.

O dr. Li Wenliang, 34 anos, denunciante e depois ele próprio vítima do Covid-19, acaba por ser mais um herói da Praça Celestial (Tiananmen), trinta anos depois. A maior doença da China é a sistemática censura e repressão de Estado.

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