Medos
Acho muita piada a pessoas que falam do tempo, mas ainda mais a pessoas que, vivendo em Portugal, têm medo do tempo, da chuva, do vento, da trovoada, dos vendavais, do que quer esteja a passar num rodapé pendurado numa pastelaria, sem som, entre um croquete e um café cheio em chávena escaldada. Pessoas que deixam de fazer coisas por causa do tempo, que deixam de ir aqui ou ali, ou não levam o carro, ou passam a levar o carro, ou mudam de caminho, ou mudam de destino, tudo por causa do tempo, como se o tempo que mata existisse em Portugal. Gente que repete os códigos cromáticos da burocracia meteorológica como se fossem sentenças de morte, código laranja, código vermelho, alerta amarelo.
Uma outra versão são aqueles que mudam comportamentos por causa dos vírus, que olham para um grupo de chineses e acham que vão apanhar coronavírus. Lembro-me de ter 14 ou 15 anos e de uma pessoa que até então respeitava me ter dito que se podia apanhar uma conjuntivite só de olhar, e lembrei-me agora de uma outra que acreditava que a hepatite resultava de duas pessoas sem hepatite beberem do mesmo copo, apenas da mistura de salivas diferentes, uma reação química.
O coronavírus deu azo a uma torrente de humor baseada na Cerveja Corona, mas, dizem as notícias da internet, muita gente, que na escala global são sempre milhões de gentes, acreditou que o vírus podia estar relacionado com a cerveja, talvez por se beber do mesmo copo, como a outra da hepatite e da mistura de saliva, talvez por acharem que pode a cerveja levedar com vírus, talvez por nada, por serem apenas cabeças sem álcool, lights, zeros; mas o pior disto tudo foi que as piadas foram com a cerveja, e no meu baú cultural a primeira piada que me saiu foi com a banda Corona, que em 1994 arrasou com The Rhythm of the Night e que foi viral, também em sentido infectotransmissivo (não confundir com os Corona do Porto que cantam "Eu não bebo coca-cola eu snifo"). Os Corona foram uma banda italiana, mas o mundo da internet e dos memes não se lembra muito deles, porque o que se ouvia nesse verão de 1994 em Portugal não era o que se ouvia no mundo, e pior ainda, o humor global não é feito por quem dançava ao ritmo da noite em 1994. Os Corona eram Olga de Souza, brasileira que foi para Itália, e que, segundo a internet, tem uma casa em Portugal.
Dos Corona nunca mais se ouviu cantar, nenhuma outra música teve aquele sucesso, uma one-hit wonder, bandas, pessoas, que só foram conhecidas por uma coisa e disso nunca mais conseguiram libertar-se; melhor do que ser um zero-hit wonder, mas deve haver dias em que pensam diferente, que prefeririam nunca ter tido aquele sucesso, que mais valia terem continuado a enganar-se com as vitórias sem sucesso dos dias que fingem ser diferentes, dos dias sem salivas.
Os GNR têm em música chamada Saliva; a letra de Saliva tem vários níveis de leitura, talvez as letras dos GNR sejam dos menos apreciados tesouros literários da língua portuguesa. A primeira estrofe diz eu quero caçar contigo amanhã, mas não se percebe se é casar ou caçar, porque os s e o ç são muito parecidos na grafia e no som, e basta muita saliva na boca, um sopa de massa, para a coisa se confundir se é casamento ou caçamento, se é casada ou caçada, se é presa, ou pressa, casa ou caça. Também há na letra uma carta fechada com saliva, selada com saliva, e nas cartas, quando havia cartas com envelopes e selos, lambia-se o envelope e lambia-se o selo. Não é bem a língua lambilonga lambilenta do poema do Carlos Drummond de Andrade, mas é uma lambida especial aquela com que se selam envelopes e se pregam selos, tudo no tempo em que se tinha medo do tempo e não se tinha medo dos vírus.
Advogado