Médicos: "Sem revisão de carreiras, salários e horas não há negociação possível"
Há serviços de urgência que continuam a fechar durante horas ou dias por falta de médicos. O cenário tem sido este desde o início de junho. E segundo têm vindo a divulgar os dois sindicatos médicos, Federação Nacional dos Médicos (FNAM) e Sindicato Independente dos Médicos (SIM), não constitui qualquer surpresa. Quem está no terreno sabe que chega o período de férias ou de feriados e que não há profissionais suficientes para assegurar as escalas. Neste momento, e como o DN já o noticiou, há unidades hospitalares a desviarem médicos da atividade programada, como consultas e cirurgias, para assegurar os turnos nos serviços de urgência e estes não encerrarem, mas quem faz 56 horas de urgência numa semana diz não aguentar muito mais tempo com este ritmo. "As horas nas urgências são as mais pesadas para um médico e o que contribui mais para a decisão de sair do SNS", argumentava há dias uma médica especialista em ginecologia obstetrícia, que trabalha no SNS e até gosta deste lado da medicina.
Por tudo isto, as estruturas sindicais esperam que para a reunião de hoje, agendada para as 10:00 no Ministério da Saúde, o espírito de negociação da tutela seja diferente do que aquele que levou para as reuniões de junho. "Está nas mãos do Governo fazer com que os portugueses tenham melhor acesso ao SNS", referiu ao DN o secretário-geral do SIM, porque aos sindicatos interessa uma negociação que resulte em "mudanças estruturais" e "não pontuais".
No entanto, admitem as duas estruturas, terem "expectativas limitadas para a ronda que de negociações vai começar". Isto porque, explica Roque da Cunha do SIM, "ao invés de negociar com os sindicatos o Governo acabou por incluir no Orçamento do Estado medidas avulsas, como o pagamento da hora extra a 50 euros a partir da 501.ª hora ou a substituição de médicos de medicina geral e familiar por médicos sem especialidade que tinham sido rejeitadas", o que "não é aceitável".
Apesar de tudo, refere, "o SIM é um sindicato de diálogo, orgulha-se de ter assinado 34 acordos de contratação coletiva com as mais variadas entidades, incluindo PPP e Santa Casa de Lisboa, e espera que o Governo esteja de forma séria neste processo negocial".
Do lado da FNAM, o vice-presidente e presidente do SMZS, João Proença, explica ao DN que até agora a tutela "apresentou uma proposta que era impossível aceitar", porque tentava resolver "a falta de médicos com um protocolo para seis meses e o SNS precisa de mudanças profundas". Indo mais longe sobre as negociações que se avizinham: "O ministério tem de estar disposto a fazer alterações e ou aceita negociar com a ideia de que as carreiras têm de ser revistas, que as remunerações e os horários também, ou não há negociação possível". Se nada for feito, o dirigente sindical acredita que "os profissionais continuarão a sair do SNS e os utentes ficarão sem alternativa".
Questionado sobre a aprovação do novo Estatuto para o SNS e se este poderá ser uma solução, o vice-presidente da FNAM explica ao DN que a questão em causa "não é o estatuto, o problema é se o ministério quer ou não a mudança na gestão e na organização dos serviços de forma a resolver a falta de médicos e outros problemas do SNS. Se não houver esta abertura, acredito que não será possível continuar a negociar, não restando outra solução à classe senão formas de luta como greves e manifestações".
Recorde-se que os dois sindicatos foram chamados já duas vezes para reuniões com a ministra e com a secretária de Estado dos Recursos Humanos, mas nenhuma sem acordo. Na altura, a ministra Marta Temido admitiu que os sindicatos suscitaram ao governo a necessidade de serem adotadas "medidas estruturais" e que "essa é também a intenção do governo".
Daí, as negociações que agora começam e que "têm um calendário de 180 dias". Embora não tenha sido aceite pelos dois sindicatos o Governo inclui no artigo 38.º da Lei 12/2022, do Orçamento do Estado, o regime excecional de prestação de horas extraordinárias por parte de médicos para assegurar as urgências, o qual define que, no caso de um médico que tenha de prestar trabalho suplementar que ultrapasse as 250 horas anuais este será remunerado, da 251.ª hora até à 499.ª hora, com um acréscimo de 25%, a partir das 500.ª horas o acréscimo será de 50%.
Para o secretário-geral do SIM o facto de a ministra Marta Temido mostrar disponibilidade para negociar, pela primeira vez em quatro anos, "é positivo", mas se a partir daqui "este processo negocial não correr bem, o que é algo que não queremos, os médicos estarão a ser empurrados para uma forma de luta que pode levar à greve, embora os médicos não desejem a greve, particularmente numa altura em que ainda há consultas atrasadas e que os profissionais estão a ser desviados da prática programada para as urgências".
Médicos
Na Ordem dos Médicos, estão inscritos quase 60 mil profissionais. Destes só cerca de 56 mil estão no ativo, mas do total só 31 mil trabalham no SNS. Por isto mesmo, o bastonário dos médicos diz que não há falta de médicos em Portugal, mas há no SNS, "devido às condições de trabalho que lhes são oferecidas e que os leva a optar por outras soluções".
Especialistas
Portugal é dos países da OCDE e da União Europeia que forma mais médios especialistas por 1000 habitantes, incluindo especialistas em obstetrícia-ginecologia. O rácio no nosso país é de 5.3 médicos por mil habitantes, enquanto a média na OCDE é de 3.6. Por outro lado, é também dos países que mais estudantes de medicina tem por 100.000 habitantes. O rácio nacional é de 15.8, enquanto o da OCDE é de 13.5.
Especialidades
Até agora, a área mais atingida pela falta de médicos que tem levado ao encerramento de urgências tem sido a da ginecologia-obstetrícia. Segundo já revelaram os sindicatos a maioria dos serviços funciona à base de médicos tarefeiros, que nestas alturas, também não estão disponíveis para assegurar as escalas de serviço. A ministra Marta Temido já explicou que, mesmo sendo possível contratar todos os especialistas desta área existentes no país, não seria possível resolver o problema de imediato. Mas além da ginecologia-obstetrícia os sindicatos dizem que há outras áreas que têm ou vão ter o mesmo problema, como pediatria, neonatologia, anestesia, medicina interna e cirurgias.
Regiões
A região de Lisboa e Vale do Tejo e do Algarve têm sido das mais afetadas com o encerramento de serviços. Desde junho que já se assistiu ao encerramento da urgência de obstetrícia dos hospitais de Almada, Amadora-Sintra, Loures, Vila Franca de Xira, Setúbal, Barreiro e Montijo. Mas o mesmo aconteceu em Portimão e Faro e em Braga.