"Médicos necessitam de formação em liderança clínica"

Se pudesse mudaria a anatomia do tempo para conseguir mais umas horas de forma a conciliar as várias tarefas. Como não pode, João de Deus, uma das cem personalidades mais influentes da saúde a nível mundial vai tratando dos olhos dos portugueses ao mesmo tempo que chama atenção à Europa para a necessidade de os médicos terem certificação e formação em liderança clínica.
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E foi com estudos nesta área, assim como de transferência de tarefas médicas, que o oftalmologista foi eleito . O galardão foi entregue pelo grupo editorial brasileiro Grupo Mídia, que tem várias publicações especializadas na área. Ao seu lado estão nomes como Melinda Gates e Yoshinori Ohsumi, Nobel da Medicina de 2016.

O que significa ser uma das cem personalidades mais influentes da saúde a nível mundial? É uma responsabilidade acrescida?

É, sem dúvida nenhuma. Foi uma surpresa completa esta distinção. Fui eleito na categoria Federações e Associações, pelo trabalho realizado pela Associação Europeia dos Médicos Hospita-lares, do qual sou presidente há oito anos. É o reconhecimento do meu trabalho, de toda a equipa que está comigo [um alemão, um italiano, um romeno e um croata], da Ordem dos Médicos e de Portugal. É uma responsabilidade grande, sobretudo pelo trabalho que está a ser feito nas áreas da liderança clínica e da transferência de tarefas médicas para outros profissionais de saúde.

A que nível é que exerce essa influência agora reconhecida? Tem algum poder de decisão?

Na associação temos reuniões regulares com o comissário europeu da Saúde, com deputados do Parlamento Europeu e, portanto, quando há novas diretivas comunitárias na área da saúde somos uma das associações consultadas para dar o nosso input. É uma organização com essa influência a nível europeu. A nível mais global tenho feito muitas conferências fora da Europa, principalmente nesta área da liderança e do envolvimento dos médicos na gestão hospitalar e dos resultados que são obtidos quando os médicos lideram os hospitais.

E dá resultado ter médicos a desempenhar o papel de gestor?

Há trabalhos muito importantes nessa área que demonstram que os resultados clínicos quando os médicos lideram os hospitais são melhores, e, curiosamente, até os próprios resultados financeiros são melhores.

Considera que em Portugal há falta de liderança clínica?

Diria que falta formação, competências, em liderança clínica. Podemos discutir sempre se a liderança é uma coisa natural ou se é uma coisa que se aprende e adquire em competências. Há pessoas que são líderes naturais, mas na área médica não basta ser um excelente técnico para se ser um bom líder ou bom diretor de serviço ou clínico, é preciso ter algumas competências na área de gestão de conflitos, na motivação das equipas, competências na área da organização financeira e de como gerir os serviços ou os hospitais. Os médicos devem adquiri essas características.

Nas faculdades de Medicina deveria haver alguma disciplina de liderança?

Claro que sim. Em Portugal temos uma faculdade de Medicina que tem uma cadeira na área da liderança clínica, que é do professor Henrique Martins, da Universidade da Covilhã. Lá fora já há muitas com esta disciplina.

Tem havido conversações com os ministérios da Saúde e Educação?

Que eu saiba não. Não há ainda uma harmonização dos programas das várias faculdades.

No próximo ano vai coordenar na Europa a criação de uma academia na área da certificação e formação em liderança clínica. O que é que os doentes podem ganhar com essa academia?

Pretendemos dar uma certificação europeia em liderança clínica. Temos uma organização europeia de médicos que dá uma certificação europeia nas várias especialidades, ou seja, a pessoa pode ser cirurgião geral com uma certificação europeia. Nós estamos a fazer a mesma coisa nesta área da liderança clínica.

É mais do que um diploma para o currículo?

Não é só ter o diploma, o que se pretende é que tenhamos uma pool de médicos de vários países que possam ser escolhidos para serem líderes e dessa forma evitar alguma confusão que se verifica em alguns países que estão a alargar as lideranças dos departamentos e dos serviços a outros profissionais da saúde não médicos.

Está a falar da transferência de tarefas, que na sua opinião tem um impacto negativo...

Sim. As experiências de alguns países não têm sido boas quando se transferem tarefas. Uma coisa é um médico delegar algumas tarefas mas assumir a responsabilidade de estar a supervisionar essa delegação de tarefas, outra é distribuir tarefas sem se saber bem de quem é a responsabilidade se alguma coisa corre mal e de como agir para resolver os problemas.

Um diretor clínico de um hospital deveria de ter esta certificação?

Claramente. Enquanto um diretor de hospital tem de ter outras competências um bocadinho diferentes, como a de gestor, um diretor clínico tem de ter uma liderança clínica já que é a voz dos médicos dentro do hospital. Tem de liderar uma equipa de diretores de serviço, gerir conflitos, motivar as pessoas.

Pelo que conhece, os diretores clínicos de hospitais em Portugal não têm essa certificação?

Não têm. Às vezes são escolhidos não pelos médicos, como era há uns anos, mas pela administração dos hospitais, e isso poderá provocar um conflito de interesses, de se tornarem mais a voz da administração do que a voz dos médicos, independentemente de serem bons líderes.

Como personalidade influente, o que é que mudaria no Serviço Nacional de Saúde (SNS)?

Fiz um estudo interessante a nível europeu relacionando várias coisas: o PIB de cada país com a percentagem que cada um disponibiliza para a saúde e depois ligando isto aos indicadores de saúde, como a mortalidade infantil, tempo de vida, situações clínicas como os enfartes do miocárdio. Evidente que nos países com o PIB muito alto para a saúde, como a Holanda, os resultados são melhores. Mas nós, apesar de termos um PIB baixo e uma percentagem baixa para saúde, temos bons resultados em relação a outros países.

Quer com isso dizer que a estrutura do SNS até funciona bem para os meios financeiros que tem?

O que posso dizer é que com pouco dinheiro conseguimos resultados muito bons, que são elogiados na Europa.

Mas internamente são mais as vozes críticas do que os elogios...

O que não se pode é tentar destruir o SNS. Quando vemos que são contratadas empresas externas para prestar serviços - e muitas vezes não sabemos a qualificação dos médicos, nem quem são -, isto obviamente põe em causa a qualidade. Depois temos um problema grande que é o facto de o SNS ser muito focalizado nas urgências. Os hospitais funcionam à volta dela e isso está errado e não acontece nos países com bons resultados, onde as urgências têm muito menos afluência do que as nossas.

Mas isso não acontece porque os cuidados de saúde primários não funcionam como deveriam?

Não faço essa avaliação, é mesmo uma questão de sistema. Nalguns países, o acesso ao hospital não é totalmente livre, as pessoas têm de passar pelo médico de família e só depois é que são referenciados ao hospital. Isto filtra muito, o que permite que os tempos de espera sejam mais baixos do que os nossos. Em Portugal, para isso acontecer tem de haver uma mudança relativamente aos cuidados primários, que consiste em criar condições para permitir um acesso célere dos doentes, de forma que as urgências não sejam sobrecarregadas. É toda uma filosofia que devia ser alterada: o hospital deixar de ser urgenciocêntrico e passar a ser muito mais eletivo.

Isso requer um investimento grande? Mais médicos...

Sem dúvida, teremos de ter médicos suficientes para o fazer, mas penso que nos próximos anos, com o número de internos formados, é possível melhorar. Temos de melhorar, obviamente, os tempos de espera é uma coisa que não é só em Portugal, é um problema europeu geral.

Como presidente da Associação Europeia dos Médicos Hospitalares tem uma visão do estado da saúde a nível global. Que lugar ocupa a de Portugal?

Ao nível europeu posso dizer que, apesar de tudo, funcionamos bem. Nós temos um serviço de saúde universal, enquanto noutros países o acesso é muito difícil, têm um sistema nacional de saúde baseado num seguro estatal e quem não paga esse seguro não tem acesso a não ser em situações de urgência, e isso é dramático. Nós, apesar de tudo, estamos bem porque não há ninguém fora do sistema e isso é a uma grande virtude do SNS. Alguém dizia há uns tempos que foi a maior conquista do 25 de Abril, e eu subscrevo.

E há condições para a manter dessa forma?

Essa é a grande questão. Ouvimos os governos dizerem que é necessário fazer alterações, as quais não me parece irem no bom sentido, vão mais no sentido de dificultarem o acesso, de destruir um bocadinho o SNS da forma como o conhecemos. Temos de lutar por manter o SNS e tentar melhorá-lo. Esse é o objetivo de todos nós que trabalhamos na área da saúde.

O que é que tem mudado na relação médico-doente? Há queixas de menos proximidade, de ser mais impessoal...

Infelizmente tenho de concordar com essa visão, e há várias causas para isso. A pressão que as administrações fazem em relação ao número de consultas reduz drasticamente o tempo com que conseguimos estar com cada doente, e isso dificulta logo a relação médico-doente. Temos de ver 30 doentes em cinco horas, a pressão é brutal. Depois temos observado que aos médicos mais jovens - a maioria extraordinariamente bons em termos técnicos e cientificamente brilhantes - falta-lhes um bocadinho de disponibilidade de perderem um pouco da sua vida social para investirem nos doentes, pelo que a relação é claramente mais fria. A própria questão informática também trouxe alguma diminuição dessa qualidade da relação, às vezes até o posicionamento dos computadores atrapalha. Quantas vezes vemos o médico de costas para o doente a escrever no computador e a fazer perguntas? Isto é absolutamente horrível, o doente sente que o médico está ali mas não lhe está a ligar.

Esta é uma das preocupação da Ordem dos Médicos?

A relação médico-doente é um elemento tão importante que a Ordem dos Médicos portuguesa está a trabalhar com a de Espanha no sentido de tornar esta relação Património Imaterial da Humanidade.

Como é que os portugueses estão a ver atualmente? Recorrem mais ao oftalmologista?

Do ponto de vista da oftalmologia, foi das especialidades que maiores avanços tecnológicos tiveram nos últimos anos, desde a parte da cirurgia, de correção de miopias, problemas cirúrgicos, etc., foi um salto grandioso. Isso trouxe maior qualidade de vida visual aos portugueses. Não diria que estamos a ver pior, mas temos uma expectativa de vida maior, e sabemos que muitas das patologias oftalmológicas estão relacionadas com a idade. Ou seja, estamos a ver melhor por um lado, porque temos uma maior oferta de qualidade de tecnologia e cirurgia, mas por outro lado também estamos, numa determinada faixa etária, com muito mais patologias.

Os portugueses já deixaram de ir a Cuba para serem operados às cataratas?

Já, já... [risos] Há um tempo fui ao Algarve dar consultas e apanhei vários doentes que sofrerem em Cuba, uns estavam mais ou menos, outros muito mal. Essa situação foi uma coisa política, um jogo eleitoral. Nem vou poder falar muito sobre o assunto porque não faz muito sentido o que aconteceu. Mas, falando de cataratas, não precisamos de ir a Cuba, temos uma oftalmologia de nível mundial.

Porque optou por oftalmologia?

Tem uma história engraçada. Durante a faculdade tive uma excelente nota a Anatomia e fui convidado pelo monitor da cadeira para ficar a dar umas aulas. Alguns dos colegas assistentes eram oftalmologistas e utilizávamos um microscópio cirúrgico e instrumentos da oftalmologia para fazer investigação. Foi aí que adquiri um gosto imenso pela microcirurgia. Foi um caminho mais ou menos natural.

Entre o trabalho no hospital público, as consultas no privado, as aulas na Escola Superior de Tecnologias da Saúde de Lisboa, a Ordem dos Médicos e as idas a Bruxelas para os trabalhos e reuniões da associação, o tempo que sobra é aproveitado para...

Sou daqueles que pensam que o dia devia ter mais horas... quando consigo ter folga ao domingo jogo futebol.

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