Médicos estrangeiros enfrentam burocracias para trabalhar em Portugal

Profissionais reclamam do longo procedimento imposto para reconhecimento dos diplomas. Ordem dos Médicos diz que Portugal possui médicos suficientes formados dentro do país.
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Enquanto Portugal enfrenta uma crise no Sistema Nacional de Saúde (SNS), com perturbações nos serviços de urgência e faltas de profissionais, médicos estrangeiros lidam com a burocracia para "provar que são o que são". É assim que médicos e médicas ouvidos pelo DN definem o processo de reconhecimento do diploma e especialidades para terem o direito de trabalhar no país.

A professora universitária e pneumologista Analúcia Maranhão é uma delas. Com mais de 20 anos de experiência como especialista e docente universitária, a profissional não consegue trabalhar em Portugal. "Nem na pandemia, quando precisavam muito de pneumologistas experientes fui chamada", conta a carioca que se mudou para Portugal há cinco anos.

A médica brasileira enfrenta dificuldades para tentar validar o diploma universitário, mas encontra burocracias e "coisas sem sentido". Como exemplo, cita o facto de não ter direito à equivalência mais célere através do convénio entre a Universidade de Lisboa e a Universidade Federal do Rio de Janeiro: "Vale apenas para quem fez a graduação lá, sendo que eu fiz mestrado e fui professora na universidade durante anos", relata.

Analúcia Maranhão fez a primeira das três provas obrigatórias para ter o primeiro grau reconhecido, mas não foi aprovada. "É uma prova dificílima e acho que não faz sentido pedir a um especialista que tem um subárea de atuação há décadas, que com sua experiência poderia ajudar em muito a população de Portugal, a fazer uma prova de nível de graduação para provar que é médico, e ainda depois outra prova para provar que é especialista?", questiona.

A carioca continua a fazer teleconsultas para o Brasil e não pretende passar pelo processo de novo. "Espero que o Governo vença a batalha contra o sistema protecionista médico de Portugal, para o bem da população portuguesa, e modifique os critérios de validação da graduação e especialidade e esteja na mão de "mentes progressistas".

O procedimento de validação do diploma pode levar até dois anos e envolve uma série de burocracias. A Ordem dos Médicos (OM) admitiu ao DN que uma comissão vai rever o atual método de forma a deixar "mais célere, não mais fácil".

O reconhecimento da especialidade é ainda mais difícil e envolve uma prova oral, em que os médicos "precisam de provar que são o que são". A também médica brasileira Flávia Santiago, que atua no SNS em Santa Maria da Feira, passou pela mesma situação. "Fiz a prova difícil para provar que sou o que eu sou, médica e pediatra", destaca Flávia, que tem nacionalidade portuguesa.

Foram dois anos e muitos euros investidos até chegar à etapa final. Além da burocracia que enfrentou, Flávia foi avisada da data da prova com apenas 30 dias de antecedência. "É muito em cima da hora que nos respondem e muita matéria para estudar", recorda. Outra dificuldade pelo caminho foi a de obter a nota da aprovação. "Simplesmente avisaram-me que passei, mas não deram a nota. Só que sem a nota eu não conseguia emprego. Tive que pedir muito para que mandassem a nota para fazer o contrato no hospital, onde já conheciam o meu trabalho e por isso fui contratada", sublinha. Assim como os demais médicos do SNS, precisa de fazer "muitas horas extra para o serviço funcionar".

Também durante quase dois anos, o médico angolano Luís Filipe Borges teve de fazer sucessivas provas para obter a inscrição na OM. Formado em 1991 em Luanda, o médico trabalhou e estudou no Brasil, onde fez mestrado e doutoramento na Universidade Federal do Rio de Janeiro com especialidade em medicina intensiva.

Assim como Analúcia, por não ter obtido o mestrado e doutoramento na faculdade onde se licenciou, não obteve a equivalência automática, mesmo com o restante da formação. Luís teve que passar por três provas distintas, desde a escrita, prática com paciente e apresentação de um trabalho para ser médico em Portugal.

Depois, mais um entrave: enviar à Ordem uma série de documentos, todos certificados, na esperança de obter a inscrição. Veio então a surpresa: poderia ser médico, mas não autónomo, ou seja, precisa sempre de estar acompanhado de outro profissional. O angolano avalia a medida como sem sentido: "Eu sou médico, passei em todas as provas que me foram exigidas em Portugal e mesmo assim não posso ter autonomia? É uma burocracia que não se entende num país que tanto precisa de médicos", argumenta. Ele ainda pontua que "Portugal precisa de médicos urgentemente, mas as alternativas continuam a ser muito elitistas e protecionistas".

Um psiquiatra brasileiro de 47 anos, que prefere manter o anonimato, também passou por um longo percurso para provar que estava apto a trabalhar em Portugal. A jornada começou em 2017 e só terminou em junho de 2023, após uma série de provas de vários géneros, envio de documentos certificados e autenticados, escrita e reescrita de currículos e um recurso judicial. "É um processo caro e muito desgastante, onde temos de procurar as informações sozinhos", resume o médico, que está a trabalhar no setor privado. No entanto, deseja fazer parte do SNS.

"Tenho vontade de trabalhar no sistema público, porque gosto e por princípios: acredito na saúde como direito básico que não deve ser tratado como mercadoria. No campo da saúde mental temos um histórico trágico deste modo de funcionamento no século passado e uma experiência muito frutífera no Brasil com a expansão dos serviços comunitários e públicos de saúde mental neste século", argumenta. O brasileiro avalia que existe muita burocracia para que os profissionais possam trabalhar.

"As instituições deveriam preocupar-se não somente com a comprovação da capacidade técnica dos médicos, mas também trabalhar no sentido de favorecer a sua integração ao SNS. Não vejo muito propósito em formar médicos locais e admitir médicos estrangeiros para que atuem somente no mercado liberal da saúde", salienta. Ao mesmo tempo, não acredita que a contratação de médicos estrangeiros resolva o problema do país.

"Sou muito favorável a uma maior recetividade e intercâmbio entre cidadãos e entre os países. Fomentar a vinda de médicos estrangeiros pode favorecer a resolução mais imediata de carências eventuais, o que é importante. Mas não resolve problemas mais prolongados, como a falta de investimentos, de uma certa rigidez que se percebe nos modos de contratação, na evolução das carreiras e nas práticas dos serviços públicos de saúde", argumenta.

O brasileiro Júlio Becker já trabalhou como médico de família no Alentejo e também teve dificuldades no reconhecimento da especialidade. "Os papéis e provas que temos do nosso trabalho de nada valem aqui", diz. O profissional foi contratado inicialmente em 2008 e relata que gostou muito das pessoas com quem conviveu. Na altura, o ordenado era de 37 euros por hora. Em 2020, Júlio regressou ao serviço, após o mestrado que fazia em França ter sido cancelado durante a pandemia.

O regresso ao Alentejo não foi vantajoso financeiramente: "Ofereceram-me um apartamento, mas demorou para ficar pronto e tive que morar num corredor com a minha família", relembra Júlio Becker. O salário também baixou. Passou de 37 euros à hora para 22 euros.

Mesmo assim, Júlio diz ter o perfil ideal para médico de família, ainda mais em áreas com muitos idosos, como é o Alentejo. "Eu visitava as pessoas nas casas, tínhamos projetos de medicina preventiva. Os pacientes eram muito queridos. Eu nunca precisei de comprar ovos, sempre ganhava muitas coisas", destaca.

O maior problema, de acordo com o médico, era a conciliação da medicina familiar com as escalas de urgência. "Até 2019 eu tenho registadas mais de sete mil horas extra", conta. Segundo Becker, muitas vezes as consultas periódicas e atividades programadas tinham que ser canceladas por conta de longas urgências de última hora noutras cidades. "Compromete todo o trabalho de medicina de família, que é essencial para as urgências não estarem cheias", detalha.

Hoje, Becker faz um mestrado em geriatria na Bélgica e recebe 77 euros por hora para trabalhar. Mesmo assim, quer regressar a Portugal quando finalizar os estudos, com esperança de que o sistema de trabalho seja melhor no futuro.

Em agosto, o Governo lançou um concurso para a contratação de 300 médicos estrangeiros através de uma espécie de reconhecimento automático das habilitações. O requisito é que o profissional tenha um mínimo de cinco anos na atividade. É oferecido um contrato de trabalho de 40 horas semanais, com possibilidade de "concentrar em quatro dias", mas com "possibilidade de trabalho suplementar". A remuneração mensal é de 2863,21 euros ilíquidos por 14 meses e seis euros de subsídio refeição em cada dia de trabalho. Além disso, recebem uma casa na área geográfica em que vão atuar. A contratação é para as regiões de Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve.

O urologista carioca Marcelo Couto, de 66 anos, é um dos inscritos. Com mais de 40 anos de carreira, viu na oportunidade uma maneira de ter uma vida tranquila e continuar a exercer a medicina juntamente com a esposa, que também é médica.

"É perfeito para nós que queremos praticar a medicina de família e Portugal precisa de médicos", explica o médico brasileiro. O casal possui uma casa no Algarve e nacionalidade portuguesa.

Marcelo Couto enviou o currículo no modelo europeu, conforme determina o concurso e todos os demais documentos solicitados. O prazo encerrou no passado dia 2 de outubro, mas, até agora, não recebeu nenhuma resposta. "Mandei vários e-mails, mas não tive retorno. Não sabemos nada como será ou quando", ressalta.

O DN questionou o Ministério da Saúde sobre quantos profissionais fizeram a candidatura e se há um cronograma de convocações. Porém, não foi dada nenhuma resposta sobre esta e outras questões colocadas pelo nosso jornal. O anúncio prevê que o trabalho deverá ser obrigatoriamente no SNS durante três anos. No entanto, não deixa claro se, após o fim do período, a validade do reconhecimento do diploma se manterá.

Esta é uma das principais dúvidas dos candidatos e de juristas da área. A advogada Patrícia Barbi possui, em Portugal, um escritório especializado em reconhecimento de diplomas. Frisa que não está claro o que acontecerá após os três anos de permanência no SNS, mas entende que é um direito que não pode ser retirado. "Juridicamente, entendo que um direito garantido, não se retira", defende. A maior parte dos clientes da jurista são brasileiros, que procuram o escritório para preparar recursos, por exemplo. "O processo não é claro, não dá prazos concretos, é demorado e extremamente caro.", avalia. Para janeiro, quando será realizada a prova teórica anual para o reconhecimento do grau, Patrícia já tem mais de 60 clientes inscritos. Cada um vai pagar 1500 euros às universidades para ter direito a fazer a prova, sem contar o gasto com documentação.

Miguel Guimarães, ex-bastonário da OM, reconhece que a demora na avaliação das provas para reconhecimento da especialidade - algo de competência do órgão - é demorada. "Tentámos fazer com que os processos fossem mais ágeis, mas é um trabalho que demora algum tempo e os membros dos colégios que avaliam fazem-no de forma voluntária", justifica o médico.

Sobre a contratação de profissionais estrangeiros, o antigo bastonário critica que o Governo não tenha aplicado como requisito ser um médico especialista em medicina geral e familiar. "Não me parece uma decisão muito acertada, porque, em Portugal e em grande parte da Europa, é um cargo de especialidade que um médico leva quatro anos a fazer, não é o mesmo que ser apenas um generalista", argumenta Miguel Guimarães.

Carlos Cortes, atual bastonário da OM, não acredita que faltem médicos em Portugal. O problema, segundo o patologista, é não conseguir atraí-los e mantê-los no SNS. "Não têm a condições adequadas nem ordenados que valorizem o importante trabalho dos médicos", diz ao DN. Ainda de acordo com o bastonário, é preciso "apostar primeiro nos médicos formados em Portugal", ainda que afirme não ser contra a contratação de estrangeiros, desde que tenham "formação adequada". Segundo este responsável, o problema está no SNS. "Seja o médico de onde for, não se vai manter no SNS do jeito que está", critica. Por outro lado, Carlos Cortes conhece a burocracia enfrentada pelos profissionais estrangeiros que querem trabalhar em Portugal e, por isso, a OM vai atuar, em parceria com as universidades, na apresentação de propostas para agilização do procedimento.

Na área das especialidades, o bastonário revela que serão pensadas estratégias para melhorar o processo de reconhecimento. Concorda com algumas das críticas dos médicos ouvidos pelo DN, como a de que a aposta precisa de ser na medicina preventiva, não na colocação destes profissionais nas urgências. Dados da Ordem dão conta que o país tem seis milhões de consultas de urgências por ano e que 1,6 milhões de cidadãos não possuem médico de família.

Já sobre o protecionismo e preconceito com os estrangeiros, Carlos Cortes recusa a crítica: "Refuto e recurso completamente que a Ordem seja preconceituosa ou xenófoba. A nossa nacionalidade é ser médico. Quanto a mim, mais ainda, eu tenho uma educação multicultural, tenho amigos de África e do Brasil", pontua. Ainda segundo o líder da Ordem, a única coisa que importa é a "qualidade da formação". O DN enviou também um pedido de reação ao Ministério da Saúde sobre as críticas da Ordem, mas não obteve resposta.

amandalima@globalmediagroup.pt

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