Médicos de família satisfeitos com orçamento e vagas para internos, mas só isto não chega
Há pouco tempo foi denunciado que médicos de família estavam a levar papel de casa para imprimir receitas, mas as falhas de material nos cuidados primários não se ficam por aqui. Há unidades em que faltam resmas de papel, mas há outras sem tinteiros, termómetros, oxímetros, material para medicação básica para consultas de doença aguda, para saúde infantil, material para pensos ou até papel para marquesas ou outras onde ainda há duas balanças para oito médicos. Há também unidades que funcionam em instalações degradadas, com lâmpadas fundidas que não são mudadas, com telefones que não funcionam e até com elevadores parados durante meses ou anos.
Quem o diz ao DN é o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF), Nuno Jacinto, classificando todas estas situações como "pequenas grandes coisas que afetam o nosso trabalho e o degradam, coisas que desagradam aos doentes e que dão uma imagem de desleixo, quando são importantes para se dar cuidados de qualidade".
Por isto mesmo defende: "Não podemos continuar a funcionar assim. Este tipo de material tem de existir nas unidades. Às vezes, dizem-nos que o problema é levarem muito tempo a chegar às unidades, o que não pode acontecer. Não podemos, profissionais e utentes, ficar à espera de que seja lançado concurso para a aquisição de material".
O problema, argumenta ainda, é que depois "dizem-nos para reportarmos as falhas, e as unidades reportam. Começam por o fazer ao ACES (Agrupamentos de Centros de Saúde), estes reportam às ARS que ainda tem de reportar acima, a culpa nunca é de ninguém e o procedimento é sempre o mesmo".
Uma prática que leva Nuno Jacinto a afirmar também que "é muito positivo" os cuidados primários serem uma prioridade para o Orçamento do Estado (OE) para 2023 e para esta equipa governativa, mas "o problema é que andamos a ouvir isto há muito tempo".
Aliás, a prática corrente tem sido "a discrepância entre o que é dito e o que é feito". Ou seja, os cuidados primários são sempre uma prioridade do sistema, até porque são a porta de acesso para qualquer utente, mas o que se verifica é que "não se tomam medidas que alterem, de facto, o funcionamento das unidades e que mudem os modelos remuneratórios. As vagas têm sido lançadas de forma completamente arbitrária ao que ditam as necessidades", mas, desta vez, assume, "temos esperança que, de uma vez por todas, o discurso se traduza na prática e que haja medidas condizentes".
O ministro da Saúde, Manuel Pizarro, já reconheceu que os problemas do Serviço Nacional de Saúde (SNS) levarão tempo a resolver, mas anunciou que a sua equipa já está a trabalhar num plano para cada uma das três regiões do país com maiores dificuldades no número de médicos de família para responder ao número de utentes inscritos, nomeadamente Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve. "Nos próximos anos, o balanço entre os médicos de família que atingem a idade de reforma e os novos médicos especialistas formados ainda é um balanço com dificuldades", mas "estamos a trabalhar ativamente num plano para cada uma destas três regiões", embora nada mais tenha especificado.
Ao mesmo tempo, divulgou que a par das "medidas estruturais" necessárias", serão lançadas 560 vagas para o internato da especialidade a nível nacional para 2023, sendo 200 vagas para só para a região de Lisboa e Vale do Tejo (LVT)", que é a mais carenciada. Neste momento, e segundo dados do Portal da Transparência, atualizados até setembro, existem quase um milhão e 300 mil portugueses sem médico de família, mais precisamente 1 2 98 078. Na região de LVT há quase um milhão, 923 325, no Algarve 86 140 e no Alentejo 64 496.
Para os médicos de família, "só as 560 vagas para o internato a nível nacional já é muito bom, ainda mais porque 40% vão para a região mais carenciada, o que significa que, finalmente, estamos a formar profissionais nas regiões em que fazem mais falta. Mas o importante é sabermos o que vai ser feito para conseguirmos reter estes profissionais no SNS quando concluírem o internato? Isto é o que não tem sido possível nos últimos anos". O presidente da APMGF diz mesmo que, desta vez, tem de haver "uma aposta clara nos profissionais, sobretudo naqueles que já estão no SNS, para que não saiam, e nos mais novos, para que sintam que há sinais de mudança e de futuro no sistema público", sublinhando que a classe aguarda para saber o que integra "o plano que está a ser preparado".
Uma coisa é certa "é preciso começar a trabalhar nas carreiras médicas para que quando estes internos acabarem a especialidade tenham uma carreira atrativa à sua espera e possam pensar que é isto que querem fazer para o resto da vida", salienta Nuno Jacinto, continuando: "É preciso dar muito mais autonomia aos ACES, às próprias unidades em termos de funcionamento e de organização. É preciso ais flexibilidade de horários, que é algo que não existe e tem afastado muitos colegas, e é preciso mexer nos modelos remuneratórios nas unidades de cuidados primários. Não é possível manter-se a discrepância que temos hoje nas remunerações entre Unidades de Saúde de Cuidados Personalizados (USCP) e Unidades de Saúde Familiar (USF) de modelo A e B", sendo que são estas últimas que reúnem as melhores condições.
Como refere o presidente da APMGF, há muito que uma solução para esta discrepância remuneratória vem a ser reivindicada pela própria classe e até referida por muitos outros especialistas da área da Saúde. Nuno Jacinto diz tratar-se de uma questão premente para o bom funcionamento dos cuidados primários, mas, alerta, "a uniformização não pode ser nivelada por baixa, tem de ser por cima, senão vamos continuar a afastar muitos do sistema, incluindo quem já lá está".
O médico recorda também que quem faz as unidades de cuidados primários não são só os clínicos, "precisamos de enfermeiros, de secretários, de psicólogos e de outros profissionais para melhorar os cuidados. É claro que nos podem dizer que este percurso é difícil e que não muda de um dia para o outro. É óbvio, mas esperamos que o plano que está a ser delineado inclua todos estes pontos para que haja de facto uma tentativa de mudança. É preciso dar sinais aos colegas de que há esperança e uma hipótese de ficarem no sistema".
À questão se ainda faz sentido existirem USCP (que funcionam como os antigos centros de saúde, sem incentivos pelos atos praticados), Nuno Jacinto considera que mais do que se estar a discutir siglas deveria arranjar-se "formas de se adaptar os modelos que existem ao contexto, quer sejam USCP, USF-A ou USF-B, com uniformização remuneratória e modos de funcionar mais atrativos para os profissionais e utentes", reforçando: "Não se pode é continuar com esta realidade tão díspar".
O OE 2023 inclui uma verba de quase 15 mil milhões de euros, tendo o governo estimado para a área de cuidados primários um investimento da ordem dos 260 milhões de euros. O objetivo "é melhorar o acesso aos cuidados primários e continuar a reforma do SNS, alargando as respostas dos cuidados de saúde primários, hospitalares, continuados e paliativos, universalizando a utilização das novas tecnologias, promovendo a reorganização interna dos serviços e reformulando os circuitos de referenciação e seguimento das pessoas no SNS", lê-se no documento.
Os cuidados primários vêm referidos no OE 2023 como uma prioridade para a Saúde. E o ministro já anunciou que no próximo ano serão lançadas mais vagas para internos, sendo 200 só para Lisboa e Vale do Tejo, a região mais carenciada. O presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar diz que isto é positivo, mas são precisas medidas condizentes com o que se diz, porque continua a haver unidades sem papel, termómetros ou mediação básica.
Retrato em Números
As discrepâncias entre as cinco regiões do país são explícitas quando se consulta o Portal da Transparência. Os dados aqui divulgados estão atualizados ao mês de setembro e mostram que a região de LVT é de longe a que regista maior carência de profissionais.
8233 - É o número de Médicos de Medicina Geral e Familiar inscritos na Ordem dos Médicos. Destes, 3285 têm mais de 65 anos e estão em condições de ir para a reforma ou já estão nessa situação. Sobram 4948, mas destes 1920 têm entre 50 e 65 anos, mais precisamente 671, entre 50 e 60 anos, e 1249, entre 60 e 65. O que faz que do total só 3028 médicos integrem as faixas etárias mais novas, com a agravante de que nem todos os especialistas trabalham no SNS.
ARS Lisboa e Vale do Tejo
Tem 3 899 314 utentes inscritos nos cuidados primários. Destes, 2 959 533 têm médico de família e 923 325 não têm. Os ACES que têm mais dificuldades dividem-se entre Sintra, Loures, Estuário do Tejo e Lisboa Central. O de Sintra tem 120 474 utentes sem médico, o de Loures/Odivelas 93 525, o do Estuário do Tejo 82 924, o do Arco Ribeirinho 77 174 e o do Lisboa Central 68 687.
ARS Norte
Tem 3 779 909 utentes inscritos. Destes, 3 703 299 têm médico e 73 917 não têm.
ARS Centro
Tem 1 828 938 utentes inscritos. Destes, 1 670 844 têm médico de família e 150 200 não têm.
ARS Alentejo
Tem 511 973 utentes inscritos. Destes, 444 411 têm médico de família e 64 496 não têm.
ARS Algarve
Tem 530 981 utentes inscritos. Destes, 443 198 têm médico e 86 140 não têm