Medicina de Precisão. Do Sonho à Realidade

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Imagine um sistema de saúde que oferece cuidados de saúde sempre que precisa, onde precisa, inteiramente ajustado às suas expectativas e necessidades. Um sistema que é capaz de prevenir todas as doenças suscetíveis de serem prevenidas e de promover estilos de vida saudáveis como parte integrante do seu dia-a-dia. Idealize um mundo no qual todos os exames diagnósticos e todas as terapêuticas são totalmente eficazes, não invasivos, sem efeitos adversos, e sem impacto na sua vida diária nem na sua produtividade. Visualize ainda uma sociedade que promova efetivamente vidas saudáveis (e consequentemente mais felizes), desde a nascença às idades mais avançadas, nas quais o envelhecimento ativo é uma realidade. Por fim, assuma que tudo isto é possível com custos marginais.

É este o sonho que a "medicina de precisão" pretende oferecer para o futuro dos sistemas de saúde.

Isto é, através do recurso às mais avançadas tecnologias de processamento de informação clínica e genética, seremos capazes de adaptar todos os cuidados de saúde às especificidades genéticas, únicas de cada indivíduo.

A verdade é que, hoje, em plena União Europeia, 23% dos cidadãos já foram diretamente afetados negativamente por um erro médico. Mais, 8 a 12% de todos os doentes internados apresentaram pelo menos um efeito adverso enquanto recebiam cuidados de saúde. Só na Europa, os erros envolvendo medicamentos foram responsáveis por 197.000 mortes num único ano e por 1.100 milhões de euros em custos excessivos.

Apesar de todas as normas de segurança e o papel importantíssimo das agências reguladoras, a verdade é que continuamos a prescrever exames diagnósticos e terapêuticas tendo por base estudos e ensaios que não incorporam, em cada momento, os dados específicos do doente a ser tratado. Inferimos da população geral aquilo que se vai fazer naquele doente em particular. Sendo cada ser humano diferente, os erros são uma inevitabilidade do modelo atual.

Os avanços científicos da última década têm demonstrado que é possível diagnosticar as causas específicas causadoras de doença, escolher a estratégia terapêutica que com maior probabilidade beneficiará o doente e mitigará os riscos associados.

"Primum non nocere". Sendo a primeira missão de cada Médico a de não fazer mal ao doente, assume-se que abordar a "medicina de precisão" não é apenas uma opção. É um imperativo ético para assegurar os melhores e mais adequados cuidados saúde possíveis para cada um dos doentes.

Porém, há desafios gigantescos a ultrapassar se quisermos tornar o acesso e o exercício da "medicina de precisão" uma realidade no Serviço Nacional de Saúde.

A ausência de ferramentas universais, a custos comportáveis, do genoma de cada cidadão, e da capacidade de processamento informático para extrair toda a informação necessária, são barreiras enormes que impedem este progresso científico. Se associarmos a esta realidade, a ausência de legislação que a contextualize e de reguladores que a compreendam, assim como a enorme resistência que os Estados apresentam em providenciar e partilhar dados em saúde, percebemos que o caminho que nos espera é longo e tortuoso.

Por outro lado, a indústria de produtos farmacêuticos, diagnósticos e dispositivos estão confrontados com uma nova realidade na qual deixarão de comercializar os seus produtos "one-size-fits-all", os quais asseguravam uma venda massificada com significativo retorno financeiro. Pelo contrário, espera-se que estas indústrias sejam capazes de apresentar soluções e produtos cada vez mais personalizados a cada doente ou grupo específico de doentes. Se estivéssemos a falar da indústria têxtil, estaríamos a assistir ao retrocesso do "pronto-a-vestir" para voltarmos ao tempo dos alfaiates e modistas, com os seus modelos desenhados à medida de cada cliente.

Tais transformações implicarão mudanças profundas no próprio modelo de negócio das indústrias e, consequentemente, na sua relação com o Estado pagador. Será expectável que sejam desenvolvidos mecanismos inovadores de financiamento que incorporem os resultados em saúde, assim como a diversificação de serviços a oferecer juntamente com os produtos comercializados.

Outro desafio à implementação generalizada da "medicina de precisão" prende-se com a resistência intrínseca dos profissionais de saúde, dada a ausência de orientações clínicas e terapêuticas "baseadas na evidência". Esta terá de ser uma das áreas prioritárias de investimento por parte da academia e das demais instituições científicas.

Por fim, o desconhecimento por parte dos Doentes das potencialidades da "medicina de precisão" leva a que não sejam a força motriz desta mudança. Mais, ao não terem uma voz ativa, os Doentes demitem-se inconscientemente da defesa daqueles que poderão vir a ser alvo de discriminação genética, assim como potenciam-se as desigualdades no acesso à inovação.

Por mais que possa parecer uma visão do futuro, a "medicina de precisão" é já hoje uma realidade em vários países no combate ao cancro, às doenças raras e à tuberculose, só para referir alguns exemplos práticos. Compete aos responsáveis que gerem o sistema de saúde, juntamente com as instituições promotoras de inovação, a capacidade de gerar um ambiente favorável ao desenvolvimento da ciência para que o genoma seja colocado ao serviço das pessoas. Para salvarmos a Humanidade, comecemos por salvar uma pessoa de cada vez. Com precisão.

O médico e deputado Ricardo Baptista Leite foi orador na sessão "Redesigning Health Systems for Precision Medicine" no passado mês de Abril na Universidade de Harvard (Boston, EUA)

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