Me, Tarzan. Too, Jane
Sempre resisti às generalidades. Por exemplo, ser português. Nós, os portugueses. Sim, podemos demarcá-lo de forma administrativa, mas isso do ser português quer dizer o quê, hoje?
Eu sinto-me mais da língua portuguesa do que português. E a língua é uma pátria, pode ser, mas a literatura, se calhar, será mais. Ou qualquer lugar onde me encontre com quem acredita no mesmo que eu acredito. Lugar provavelmente imaginário. Ou onde me encontre com quem ria das mesmas coisas que eu rio, ou com quem dance as mesmas músicas que eu dance.
Não acredito noutra pátria que não estes lugares nómadas de encontro, desejo ou melancolia.
Sou por sobreposição e isso me acrescenta e enriquece: português, antes disso, lisboeta, litoral, da língua portuguesa, latino, europeu, dos anos 1960 até agora, homem hoje, menino que fui antes.
E o que é ser homem, hoje, face ao que se pergunta nesta edição cujo tema é: mulher? (sem ponto de interrogação)
Ser mulher quer dizer o quê, hoje?
É esta generalidade que eu também recuso: reduzir toda a complexidade ao determinismo de uma categoria.
Aliás, apesar de tudo o que ainda há para melhorar, esse é o sinal de que muito se avançou: soa cada vez mais absurdo dizer "nós, mulheres" na exacta medida em que esse vai deixando de ser o traço mais determinante para qualquer forma de desigualdade ou repressão a que indivíduos do sexo feminino possam ser sujeitos.
Hoje, nas sociedades democráticas ocidentais, é mais determinante ser pobre ou não ser pobre; ser branco ou ser negro, ter ou não ter determinado tipo de educação, por exemplo...
Ser mulher, categoria genérica, é uma designação ou demarcação determinante que faz sentido em países onde as mulheres são claramente reprimidas, onde não têm os mesmos direitos que os homens.
Como ainda acontece em Portugal, o que é evidente pelo número de casos de violência doméstica, ou de violação, ou pela desigualdade salarial, ou, de forma reveladora, pelo número de sentenças inaceitáveis de juízes (medievais) sem juízo (contemporâneo) quanto a casos relacionados com sexo ou género.
Ou como, apesar de tudo, ainda acontece nas democracias ocidentais que têm permitido os casos de abuso que movimentos como o #MeToo têm vindo a denunciar (salvaguardados a necessária prova das acusações e o racionalismo necessário à recusa de retaliações oportunistas, histéricas e infundadas baseadas em testemunhos falsos, que igualmente se têm multiplicado).
Muito da luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres deve fazer-se pela linguagem e, desde logo, pela recusa da generalização das categorias que dividem com uma certeza inamovível: homens para um lado e mulheres para outro.
Frases do tipo "os homens são todos iguais" ou "as mulheres são todas iguais" fazem cada vez menos sentido. Ou quaisquer declinações genéricas desse tipo.
O aparente paradoxo na defesa de qualquer causa - dos negros, dos homossexuais ou das mulheres, é que devemos lutar para que essa marca identitária não se torne totalitária, dominante, totalmente determinante na nossa formação individual. Quando isso acontecer, quando essas marcas forem enriquecedoras da diversidade que somos sem serem socialmente penalizadoras, quando estiverem assimiladas unicamente como características individuais que apenas digam respeito à história de cada um, a causa triunfou e a democracia foi aprofundada.
A luta pela diversidade na linguagem é decisiva. O que é particularmente interessante no caso do humor. Porque o humor joga com tipos e estereótipos. Se há humor que vai envelhecer mal é o das piadas sobre a diferença entre homens e mulheres. Ele vai ficando sociologicamente datado. Como o escárnio dos homossexuais nas rábulas revisteiras.
Atenção: não estou a dizer que não se deve fazer esse humor, nunca o direi. Nunca defenderei qualquer tipo de restrição ao humor, ou sequer qualquer recomendação sobre o humor que se deve ou não deve fazer. Tal como com a liberdade de opinião, a liberdade de gozação deve ser inquestionável. Defenderei sempre a liberdade de ofender.
Simplesmente, pode acontecer que humoristas que reproduzam, amplifiquem ou glorifiquem o preconceito façam figuras tristes.
Hoje é um tempo de diferença de género mais do que diferença de sexo. Há e sempre haverá homens e mulheres, por diferença biológica. Mas o que conta é o que fazemos com o corpo que temos a partir da cabeça que temos.
Não se trata de opções sexuais, pois tal coisa não existe. Não se opta por ser atraído por este ou aquele sexo, ou género. O desejo será sempre um animal selvagem, caçando - ou escondendo-se - ou perdendo-se - na selva da cultura dos corpos e das imagens da sociedade do seu tempo.
Se fosse uma opção, o desejo seria amizade.
Conta-se aquela frase que Mário Cesariny terá dito à sua grande amiga Ana Hatherly: "Se você fosse um homem, seria a mulher da minha vida."
As coisas parecem ser simples, mas nunca são. Felizmente, em nome de toda a arte e literatura.
Gosto de mulheres. Mas não de todas. Dos homens também gosto. Mas não da mesma maneira. E também não de todos. A diferença é o sexo, claro. Para relações sexuais, homens não fazem o meu género. Precisamente.
Hoje, para além do sexo, há os géneros.
E é verdade que as amizades podem ser coloridas, embora com o tempo acabem sempre por desbotar.
Sempre pensei que se fosse bissexual (ou trissexual ou poliamoroso) poderia ter muito mais opções de relações e experiências e isso certamente me enriqueceria.
Infelizmente, sou heterossexual. Numa altura em que nas sociedades ocidentais o que parece ser cada vez mais excitante é ser, pelo menos, homossexual, gay.
Mas não. Um amigo meu, gay, especialista em sistemas de detecção de tendências, profundo conhecedor da vida em armários, grande especialista de gaydar, há muito me fez o diagnóstico rigoroso: fiquei assim um bocadinho a muito pouco de ser gay. Mas não sou.
Ao que parece tenho um lado feminino considerável, mas mesmo esse lado feminino, a ser algo, é algo lésbico. É a vida.
A verdade é que passei a minha adolescência (até aos 45 anos) a fantasiar relações (como toda a gente) livres e abertas (neste caso não como toda a gente) e cheguei mesmo a teorizar sobre o tema em obra publicada (Amizade, Enamoramento - A Elaboração dos Acasos, com Luís Miguel Viterbo, edição & etc, 1989) para depois acabar heterossexualmente casado, portanto, com uma mulher do sexo feminino, exclusivo e muito feliz. Ironia. Quem diria?
Como dizia Jerry no final do Some Like it Hot, de Billy Wilder, ao descobrir que a mulher a quem tinha proposto casamento era afinal um homem: "Well, nobody"s perfect!".
Ninguém é perfeito.
Escreve de acordo com a antiga ortografia