McGuinness: o homem da guerra que fez a paz na Irlanda do Norte

Antigo comandante do IRA que ajudou a negociar os acordos de Sexta-Feira Santa morreu ontem, aos 66 anos. Em janeiro tinha renunciado à política por motivos de saúde
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O aprendiz de talhante que passou a juventude a desviar-se das balas do exército britânico nas batalhas de rua em Bogside e que ascendeu até ao comando do Exército Republicano Irlandês (IRA) foi o mesmo homem que pôs de lado as armas para negociar a paz nos Acordos de Sexta-Feira Santa e que colocou o Sinn Féin num governo de poder partilhado com os antigos inimigos unionistas. Martin McGuinness, que para uns será sempre um "assassino" que nunca reconheceu os seus crimes e para outros um "herói" que ajudou a acabar com um conflito que fez mais de 3600 mortos, morreu ontem aos 66 anos.

McGuinness "nunca foi à guerra, ela veio ter até à sua rua, à sua cidade, à sua comunidade", lembrou ontem Gerry Adams, o líder histórico do Sinn Féin, a ala política do IRA. Nascido em Londonderry a 23 de maio de 1950, McGuinness cresceu com os pais e seis irmãos na área de Bogside, e juntou-se ainda adolescente ao IRA. Em 1972, com 21 anos, já tinha ascendido a número dois no comando do IRA de Londonderry, acabando por ser detido e condenado um ano depois por estar na posse de explosivos e de munições, reconhecendo em tribunal ser membro do grupo.

Após a sua libertação, tornou-se um dos rostos do Sinn Féin, junto com Gerry Adams, tendo sempre alegado que deixara o IRA em 1974. "Nunca estaríamos onde estamos sem ele. O Martin liderou o IRA quando havia guerra, mas liderou o IRA para a paz e acreditava genuinamente na reconciliação, mesmo quando isso deixava as pessoas desconfortáveis", acrescentou Adams. Após o segundo cessar-fogo do IRA em 1997, aquele que chegou a ser apelidado de "terrorista número um do Reino Unido" tornou-se no principal negociador no diálogo que culminou na assinatura dos Acordos de Sexta-Feira Santa, em 1998.

"Apesar de nunca poder perdoar o caminho que escolheu na primeira parte da sua vida, McGuinness desempenhou depois um papel determinante em liderar o movimento republicano para longe da violência", disse ontem a primeira-ministra britânica, Theresa May. "Ao fazê-lo, ele teve uma contribuição histórica e essencial para a jornada extraordinária da Irlanda do Norte do conflito para a paz", acrescentou.

Central no sucesso dos acordos de paz foi a relação próxima que manteve com o antigo inimigo, o reverendo protestante Ian Paisley, com ambos a serem batizados pela imprensa como chuckle brothers (literalmente, irmãos das risadas). McGuinness tornou-se assim, em 2007, no vice-primeiro-ministro de Paisley, ao abrigo do acordo de partilha de poderes entre republicanos e unionistas. Um cargo que iria manter por dez anos, tendo também sido número dois de Peter Robinson e, desde 2016, de Arlene Foster. Esta, que sobreviveu a um atentado do IRA em criança, lembrou ontem a "contribuição significativa" de McGuinness para a paz.

Em janeiro, depois de Foster recusar demitir-se quando o seu nome surgiu ligado a um escândalo que terá custado milhões aos contribuintes, McGuinness apresentou a demissão. Isso desencadeou novas eleições na Irlanda do Norte, que retiraram pela primeira vez a maioria aos unionistas e deixaram o Sinn Féin a apenas um deputado do Partido Unionista Democrática (DUP), decorrendo ainda negociações para a formação de governo.

Poucos dias após a demissão, o dirigente do Sinn Féin anunciou também que deixava a política por problemas de saúde. Nunca foram revelados oficialmente pormenores sobre a sua doença, com os media britânicos a falarem num problema grave de coração. McGuinness morreu no hospital de Altnagelvin, em Londonderry, rodeado pela mulher e os quatro filhos. O seu caixão percorreu ontem as ruas da cidade e o funeral será amanhã.

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