Mathias Enard: "O Oriente não existe"
Desde que ganhou no ano passado o Prémio Goncourt com o seu romance Bússola, o escritor Mathias Enard já concedeu cerca de centena e meia de entrevistas pelo mundo fora. De volta a Portugal, que visita a cada novo livro lançado, Enard fez o dois em um, pois promoveu o último trabalho e participou na sessão do Festival Internacional de Cultura de Cascais, que debatia até que ponto A literatura pode transformar o mundo? Um tema que encaixa à medida num dos objetivos deste romance, a história em 400 páginas sobre setes horas de insónia de um orientalista, que é uma tentativa de mostrar como as civilizações podem estar distantes da violência e partilharem a convivência. Uma conversa que começa à hora em que era anunciado o cessar fogo na Síria: "Uma boa notícia", diz o autor francês, acrescentando: "Tudo o que possa fazer parar a violência e iniciar uma fase de negociações para a paz é bem-vindo."
E começa a entrevista, durante a qual se nota que, após ouvir tantas vezes as mesmas perguntas, Mathias Enard bem que preferiria estar noutro lado...
Após a leitura de Bússola, teme-se que a paz entre o Ocidente e o Oriente nunca volte a ser a idílica do romance. Ou será possível?
Não é essa a minha opinião, porque não é mais difícil hoje do que antes. O problema é o efeito da comunicação social, que vê uma separação e um confronto entre o Oriente e o Ocidente. O que não é necessariamente verdade, apesar de existirem interesses geoestratégicos que desenham frentes de combate em muito exteriores ao Médio Oriente.
O protagonista do romance está de pijama durante todo o livro. É um viajante de sofá como a maioria dos leitores hoje em dia?
A viagem é cada vez mais feita de muitas realidades, como de informações que outros viajantes trazem, e não só de querer ir ao local.
Um dos viajantes que passam por estas páginas é Fernando Pessoa. Que não foi ao Oriente!
Mas leu, por exemplo, a tradução dos quartetos de Omar Khayyam porque se identificava com questões como o sentido filosófico da vida, do amor e da embriaguez, e irá escrever centenas de quartetos como Khayyam e tornar-se uma espécie de orientalista português sem sair de Lisboa.
Com tanta investigação, quantos anos levou a escrever este livro?
A escrever, quatro anos. Mas é um livro com muitos mais anos, porque é um assunto que me persegue desde que era universitário. Já então fazia parte dos meus temas de investigação a relação entre o Ocidente e Oriente, portanto, havia muito trabalho feito. A parte mais difícil foi mesmo aquela que trata da influência na música da Europa.
Não é um perito nessa área?
Não, tive de pesquisar bastante, mesmo que seja um apaixonado pela música há muito tempo e por isso tenha sido menos difícil. Foi um dos aspetos mais apaixonantes na escrita do livro o ser obrigado a documentar-me sobre a história da música, principalmente pelo lado musical do orientalismo.
Como conseguiu encontrar o ritmo tendo em conta a quantidade de personagens, factos e situações?
O maior problema foi encontrar a voz do protagonista, o cenário por onde a história caminha e como organizar aquela noite. A solução só aconteceu quando encontrei um ritmo que correspondia a 92 segundo por página, como se regulasse a escrita por um metrónomo, e aí consegui inscrever todas as histórias que queria contar.
É com este romance que recebe o Goncourt. O prémio tornou-se uma bênção ou uma maldição?
Nem uma coisa nem outra, passou foi a haver um holofote sempre aceso sobre o livro porque a marca Goncourt é muito forte e chama a atenção de todos os que se relacionam com a literatura. No entanto, isso tornou-se mesmo muito importante para um livro que trata de temas que não estão ao virar da esquina e que o tornou mais visível.
Além de que ficou mais rico porque recebeu um cheque de dez euros, que é o valor do Prémio.
Exato, só que o Goncourt tem outros reflexos, como o das vendas associadas que, no meu caso, já soma mais de 300 mil exemplares.
Continua a escrever igual, sem pensar no imenso público que ganhou de um dia para o outro?
Vou continuar igual e a escrever o que quero. Até acho que terei mais liberdade por causa desses novos leitores que ganhei.
Bússola tem um objetivo diverso dos livros anteriores. Em que pensava: no leitor ou na crise que se vive no Médio Oriente?
Enquanto escrevo não penso no leitor. Existirá uma espécie de leitor muito abstrato, é verdade, mas o que tentei foi fazer um livro que correspondesse ao meu projeto. Antes de começar tenho sempre uma imagem do livro e quero que fique o mais parecido possível. Neste caso, fiquei satisfeito, mesmo que nunca se o esteja por inteiro pois verifica-se sempre frustração ao parar a escrita. Queremos continuar a reescrever certas partes, mas há um momento em que é preciso dizer stop.
Este livro vai ser lido a Oriente?
Com certeza. No mundo árabe leem-se muito as literaturas estrangeiras, designadamente nos países francófonos, e como vai ser traduzido em árabe e persa acredito que será muito lido.
Onde é que o autor se confunde autobiograficamente com o protagonista?
Confesso que utilizei muitas das minhas lembranças de viagem, principalmente de países como a Síria ou cidades como Istambul, mas Franz não é feito à minha imagem. Haverá sim muita da minha paixão pelo Oriente.
E a melancolia do livro é de quem?
Aí é que não estou mesmo.
A personagem feminina, além da beleza nem apelido tem. Porquê?
É verdade que é um pouco híbrida, mas não sei se é tão transparente assim. O que se passa é que a história é contada pelo olhar de Franz, que fala dela como a vê. É um retrato pouco objetivo, de alguém apaixonado.
Os leitores serão influenciados na leitura devido à situação atual de guerra naquelas paragens?
Sem dúvida, pois noto que muito do interesse neste livro deriva da situação atual. Será possível fugir um pouco à realidade, mas o livro pretende ir além da imagem que a atualidade não nos oferece e proporcionar uma reflexão mais profunda a nível histórico.
E acreditarão na possibilidade de poder haver outra relação com o Oriente, como a que está nos tempos deste romance?
Espero que sim, porque nem tudo se resume à violência. De qualquer modo está tudo ligado e não se pode esquecer a globalização e as mudanças culturais e civilizacionais em curso. É aí que a violência pode tomar conta do primeiro plano.
Bússola não é tanto um ensaio como um romance?
Tem uma parte de ensaio tal como de poesia, mas no século XXI o romance integra tudo. A ficção aproxima-se do ensaio, bem como de temas jornalísticos e de imagens.
Pode-se dizer que o orientalismo é uma invenção do Ocidente?
Sim, o orientalismo é o modo como a Europa modela um Oriente, com as imagens, os relatos de viagem e a música e imagens que estão ainda em vigor. O Oriente misterioso, complexo e violento são clichés orientalistas.
A morte nunca está presente, mas não é a realidade atual da convivência com o Oriente?
O que se passa é que estamos sempre a colocar o Ocidente e o Oriente em confronto, mas a violência deve-se a terroristas franceses ou belgas, por exemplo, que fazem parte de um grupo que está em luta na Síria e não ao confronto generalizado.
Após estas 400 páginas, o leitor não se ilude e fica a pensar que a relação já foi boa?
O Oriente não existe, é uma construção do imaginário que fazemos desde o século XIX na Europa. O que vivemos não tem a ver com o Oriente em geral. Não se deve convocar o Oriente para esta questão e é por isso que se escrevem livros com Bússola, onde se mostra que para lá da atualidade há um mundo diferente.
Vários dos seus livros têm o foco no Médio Oriente. O tema é para continuar?
Não posso dar essa resposta pois é uma coisa que não sei porque ainda não tive tempo de pensar no próximo livro. Tenho vários projetos que nada têm a ver com o Oriente mas ainda estou hesitante. O que será o próximo livro é um mistério.