Marvão. Um festival em várias declinações do som português
O Festival de Música de Marvão (FIMM) teve um penúltimo dia sob o signo da música e dos músicos portugueses. Primeiro, foi o Lisboa String Trio, formado por José Peixoto (com a sua guitarra de formato muito original, de Óscar Cardoso), Carlos Barretto e Bernardo Couto, que, numa Igreja do Espírito Santo cheia, desfiaram 13 temas, entre originais (da autoria de Peixoto) e instrumentais da tradição lisboeta das guitarradas. Foi interessante observar como as composições novas, dentro de uma linguagem compósita (jazz, orientalismo, modalismo, atonalismo, cromatismo) conseguiram sugerir pontes com a tradição através do que se poderia chamar de citação imaginária ou referência subtil, ou mascarada, que aparece em fragmento, elíptica. Por seu lado, as "guitarradas" mostraram arranjos muito atraentes, entre o virtuosismo,o rústico e o castiço, dando espaço para que cada um dos três brilhasse a seu tempo em solos vistosos ou por simples relevo da respetiva linha na textura. Por vezes, faltava à vocalidade imanente apenas a presença física da voz naquele espaço.
À tarde, uma Igreja da Sra. da Estrela cheia ouviu o Coro Gulbenkian dirigido por Michel Corboz executar um programa de motetes de J. S. Bach, intercalados por trechos instrumentais, na maioria Prelúdios-Corais, em violoncelo (brilhou Raquel Reis) e contínuo. O alinhamento incluía o motete Jesu, meine Freude, BWV227, vasto fresco devocional e repositório de escrita contrapontística, alternando verticalidade e horizontalidade, "livre" fluxo de linhas e escrita em coral, que foi o ponto alto interpretativo da tarde. Como que embalado por tal magnificência, o Coro (um ou outro desacerto rítmico, ocasional intonação baixa dos sopranos) deu ainda uma leitura ricamente expressiva de Komm, Jesu, komm, BWV229, a encerrar o programa.
Por fim, entre o crepúsculo e a noite entrada, um concerto-festa encheu o Pátio do Castelo. Festa da música tradicional portuguesa - e do Alentejo, antes de mais -, nas vozes dos irmãos Vitorino e Janita Salomé e do Grupo de Cantadores do Redondo, acompanhados pela Filarmonia das Beiras dirigida por António Vassalo Lourenço e contando ainda com o pianista Filipe Raposo, também o autor dos arranjos.
Um sobrevoo da carreira dos irmãos, uma homenagem ao cante, a constatação dos dotes de arranjador de Raposo (se não fôra pelo cante acompanhado ao piano!), o envolvimento do público feito coro, tudo concorreu para um ambiente de festa, celebração e identificação entre palco e plateia. A amplificação sonora, em imprevista combinação com o ocasional vento, pregou algumas partidas à equilibrada perceção dos planos sonoros, enquanto que da parte da orquestra também se verificaram alguns problemas no som de ensemble. Não obstante, e como resumia alguém da terra, no final, atrás de nós: "nós também gostamos de música clássica, mas esta é a nossa música!" Pois é, a terra tem um chamamento forte...
O domingo, 31, último dia, "despertou" ao som do violoncelo de Manuel Fischer-Dieskau, que na pequena Igreja do Espírito Santo, tocou as Suites para violoncelo solo n.º 3 e n.º 4 de J. S. Bach, intercalando-as a rara Sonata para violoncelo solo, op. 25 n.º 3, de Paul Hindemith. O violoncelista começou algo "em falso", com uma Suite n.º 4 em que só na Courante e nas "galanteries" (Bourrées I e II) conseguiu uma expressão plenamente convincente. O ponto de viragem veio com a sonata de Hindemith, que teve dele uma leitura poderosa, em que os lampejos de profundidade expressiva tiveram tanto mais impacto quanto a envolvência interpretativa foi rigorosa, justa e contida. A Suite n.º 3, mais imediata que a n.º 4, respirou naturalidade e fluidez, brindando-nos o violoncelista ainda em extra com o Prelúdio da Suite n.º 1.
O FIMM encerrou com o Anglo-Portuguese Ensemble, do violetista Lourenço Macedo Sampaio, Jovem Músico do Ano do PJM 2015, e com um concerto da Hong-Kong Sinfonietta dirigida por Christoph Poppen, que teve entre os solistas o Wiener Klaviertrio - ouvimo-los em Oeiras há uma semana, tocando Schubert, Friedrich Cerha e a "desmedida" versão primitiva do Trio, op. 8 de Brahms, deixando-nos aí uma forte e marcante impressão - mais a violinista Veronika Eberle e o contrabaixista Edicson Ruiz.