Martyl Langsdorf a artista que fez mover os ponteiros do Apocalipse
Uma pesquisa na página online do Art Institute of Chicago, museu fundado em 1879, devolve-nos uma mostra de um universo plástico tão diverso como o são os trabalhos de George Seurat, Gustave Caillebotte, Diego Rivera, Edward Hopper, Pablo Picasso, El Greco ou Francis Bacon. Entre alguns dos nomes maiores da criação artística, o acervo com mais de 300 mil obras de arte da instituição sediada em Chicago, nos Estados Unidos, abre-nos caminho para autores e autoras de escala mundial menos óbvia dos atrás expostos. O trabalho de Martyl Suzanne Langsdorf é, eventualmente, um destes casos. Nascida em St. Louis no ano de 1917, filha da pintora Aimee Schweig e do fotógrafo Martin Schweig, Martyl desenvolveu uma carreira artística em torno da pintura e da litografia, com a participação em mostras relevantes, como o foi a Feira Mundial de Nova Iorque, em 1939-1940. O site do Art Institute of Chicago (AIC) revela-nos 18 trabalhos de Martyl, com recurso a diferentes meios, entre eles o acrílico e a tinta-da-china. Paisagens e também matéria menos tangível como as sinapses humanas, enformam as telas de Martyl, num período que vai da década de 1950 a 2005. A peça que, contudo, arrancou do anonimato o trabalho da então jovem artista norte-americana não está em mostra no AIC, antes na capa de uma publicação nascida na década de 1940, ainda hoje divulgada em formato digital.
A edição de junho de 1947 do Boletim dos Cientistas Atómicos, órgão de informação criado dois anos antes, expôs ao mundo a primeira imagem do Relógio do Juízo Final. Aquele que se tornou, desde então, um contador do tempo metafórico para as ameaças que pesam sobre a humanidade, nasceu do punho criativo de Martyl. Esta, no nome, expunha o peso de um apelido associado ao desenvolvimento de um projeto que mudaria definitivamente o curso futuro da história.
Em 1942 Martyl desposara o físico americano Alexander Langsdorf Jr., envolvido no Projeto Manhattan, aquele que levou, no decurso da Segunda Guerra Mundial, ao desenvolvimento da primeira bomba-atómica pelos Estados Unidos. Incitada pelo amigo de Alexander, o cientista Hyman Goldsmith, cofundador do Boletim dos Cientistas Atómicos, Martyl apresentou a sua versão visual para o relógio que aproximaria os ponteiros de uma hipotética catástrofe global. Na capa da publicação, um fundo laranja serve de palco aos ponteiros do relógio detidos na sua marcha pouco antes da meia-noite. Na caminhada para o Apocalipse, a Martyl afigurou-se-lhe visualmente apelativo que o ponteiro se fixasse nos sete minutos para o fim dos tempos. O sentido de urgência abatia-se sobre um mundo que engendrara no potencial nuclear uma forma de autodestruição. Em 1949, a União Soviética, testava com êxito a sua bomba-atómica. O grupo de investigadores que participara no Projeto Manhattan compreendia o potencial de destruição fruto de um conflito direto entre as duas superpotências.
Anualmente, desde os idos de 1947, o Boletim dos Cientistas Atómicos faz anúncio público da marcha dos ponteiros rumo à catástrofe. Um alerta ponderado com base no risco nuclear, nas alterações climáticas e nas tecnologias disruptivas, acompanhado, desde 1973 (ano da morte do biofísico Eugene Rabinowitch, até então responsável pelo movimento dos ponteiros), pelo Conselho de Ciência e Segurança do boletim. O órgão que reúne duas vezes por ano, conta com o contributo do Conselho de Patrocinadores, entidade que senta mais de uma dezena de prémios Nobel, entre eles, David Baltimore (Nobel da Medicina em 1975), Paul Berg (Nobel da Química em 1980) e Brian Schmidt (Nobel da Física em 2011).
De 1947 a esta parte, o bailado dos ponteiros, ou os riscos que estes representam, fê-los retroceder por oito vezes e avançar em 17 momentos. Se em 1991 o ponteiro se posicionava a 17 minutos da meia-noite, em 2023 estacou o passo a apenas 90 segundos do fim. Desde 2020, o Relógio do Juízo Final avançou 4 minutos e 30 segundos. No ano em que se relevou ao mundo e até ao presente a variação nos ponteiros do relógio fixou-se nos 5 minutos e 30 segundos. Em 2007, o designer americano Michael Bierut, então membro do conselho de administração do boletim, redesenhou o relógio sexagenário arquitetado por Martyl Langsdorf.
A pertinência da representação gráfica de quão próximos estamos de um desastre global não é consensual. Steven Pinker, psicólogo cognitivo canadiano, afirmava em entrevista em abril de 2018 ao editor do boletim, Lucien Crowder: "ele [Relógio do Juízo Final] não rastreia indicadores do risco real. Parece refletir o quanto o Boletim quer assustar as pessoas. Não está ligado a indicadores da ameaça objetiva (...) a inclusão, em 2007, das ameaças decorrentes das alterações climáticas, não é um indicador de risco original, como uma guerra nuclear per se. Parece-me ser mais um dispositivo gerador de pavor". Entre os exemplos elencados por Pinker está a Crise dos Mísseis de Cuba, em outubro de 1962, quando os ponteiros do relógio não se moveram.
De acordo com o Boletim dos Cientistas Atómicos no seu site, "o Relógio do Juízo Final não é uma ferramenta de previsão e não prevemos o futuro. Estudamos eventos que já ocorreram e tendências existentes. O nosso Conselho de Ciência e Segurança rastreia números e estatísticas - observa, por exemplo, o número e os tipos de armas nucleares no mundo, as partes por milhão de dióxido de carbono na atmosfera, o grau de acidez nos oceanos e a taxa de subida do nível do mar. Também considera os esforços dos líderes e cidadãos para reduzir os perigos e os esforços das instituições para cumprir os acordos negociados".A mesma fonte sublinha que "o Relógio do Juízo Final é muitas coisas: uma metáfora, um logotipo, uma marca e um dos símbolos mais reconhecidos dos últimos cem anos". Um símbolo que a cultura absorveu como dá mostra o próprio boletim ao disponibilizar online uma playlist com algumas das músicas inspiradas na representação gráfica criada em 1947, entre elas Seven Minutes do Midnight, música de 1980 dos Midnight Oil, e Two Suns in the Sunset, dos Pink Floyd. No tema de 1983, retirado do álbum The Final Cut escutamos: In my rear view mirror, the Sun is going down/Sinking behind bridges in the road/And I think of all the good things/That we have left undone.